São Paulo, quinta-feira, 13 de outubro de 1994
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O testemunho de Severo

PAULO SERGIO PINHEIRO

Faz dois anos esta semana que estamos sem Severo Gomes e Maria Henriqueta. Numa foto na sala de espera do aeroporto de Brasília, Severo e Mário Covas lêem o jornal um de costas para o outro. Estavam voltando numa tarde de domingo de 1987 de uma reunião dos ``históricos" do PMDB.
Discutia-se a saída do partido daqueles que discordavam do fisiologismo. Covas fez um dos discursos mais candentes daquela tarde. Pouco tempo depois, Covas, Franco Montoro e Fernando Henrique fundavam o PSDB.
Severo continuou no PMDB. Mas nem por isso deixou de lado sua admiração pela firmeza de Covas. Este, emocionado numa sessão em memória do amigo no Senado, saudava Severo como seu sempre aliado.
Na Folha do último sábado lá está Lula na manchete: ``Nós temos de levar em conta a história política de Mário Covas". Na primeira entrevista depois das eleições, sobressaem dignidade e princípios. Que impõem escolhas, como agora o decidido apoio a Covas. Não estamos mais somente diante de um grande líder operário: Lula há muito tem a qualidade de estadista do líder político.
Fim do primeiro turno das eleições presidenciais de 1989. Severo fica até o fim com dr. Ulysses (que lembramos hoje também, com dona Mora). Confirmado Collor, Severo é o primeiro a declarar, ao vivo na TV, seu apoio no segundo turno a Lula.
A dignidade, como a de Severo e Lula, não permite cálculos menores, irrompe sem dissimulações. Severo vai ver ia gostar da postura serena de Lula vendo seu futuro papel como ``fiscal da cidadania", exigindo que os vencedores cumpram o que prometeram.
Seria uma falta de compostura o PT sucumbir à operação ternura em curso e dar aos vitoriosos nas eleições presidenciais o aval negado por mais de 27% dos eleitores que votaram em Lula. Inaceitável deslizar para inevitáveis propostas de conciliação, sempre que algum presidente no Brasil é eleito, de governo de ``união nacional". O governo deve aprender a governar contra a oposição, experiência rara no Brasil.
Lula, sem descartar a discussão de propostas da futura administração federal, não vê por enquanto ``possibilidade de uma pessoa que defende o que eu defendo participar de qualquer governo em aliança com o PFL, PTB e adjacências". Enfim, prega a distância daqueles que Severo desabusadamente dizia que gostavam de sentar em cima das baionetas.
Não se trata de ``rigidez" programática: foi uma opção legítima concluir que a aproximação do PSDB com o pessoal político que governa o país desde 1964 (ainda que a continuidade não seja absoluta) não é a melhor via para a democratização e o Estado de Direito.
Apesar da ``modernização" do discurso dos conservadores, não há nenhum indício real de que o clientelismo do PFL esteja quebrado. A ausência de transparência, a impunidade, a miséria, o arbítrio que reinam nos Estados dominados pelos conservadores, além do controle ilegal da mídia eletrônica por seus parlamentares, e suas práticas fisiológicas e nepotistas, demonstram o contrário.
Nenhuma democracia consolidada depois das transições do autoritarismo na Europa Ibérica ou na América Latina seguiu esse modelo de aliança.
Por favor, não ofender mais a democracia cristã no Chile comparando-a com o PFL –Aylwin e Frei não são ACM. Os social-democratas e os socialistas na Europa abandonaram a fraseologia revolucionária, o estatismo, optaram pelas reformas, mas por meio de uma evolução interna –e não se incorporando às elites governantes dos antigos regimes, como agora aqui foi feito.
Em contrapartida, reconhecemos que seria completamente descabido, e pior, equivocado, nos fecharmos na rigidez da crítica à aliança vitoriosa: devemos levar em conta a dinâmica de governo numa conjuntura política profundamente afetada pelas mudanças na Presidência, nos governos dos Estados e no Congresso.
Michel Debrun, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), o mais completo estudioso das pesadas continuidades e da conciliação na política brasileira, recomenda não se superestimar a capacidade de bloqueio do PFL a alguns projetos de reforma da Presidência que poderão contar com o apoio da oposição.
Ainda que concorde conosco que a formulação da aliança PSDB com o PFL e PTB tenha implicado um ``transformismo objetivo" das posições social-democratas em relação aos conservadores, Debrun crê que apoios potenciais externos não-conservadores poderão contribuir para que a Presidência não fique sempre refém dos fisiológicos.
Não discorda de nossa observação que a aliança com o PFL é um freio para reformas mais audaciosas, mas acredita que esse peso que poderá ser eventualmente compensado (dependendo dos temas até anulado) com outros apoios nas votações no Congresso.
Apesar desse moderado otimismo, Debrun considera eventuais propostas de um entendimento orgânico entre o PT e o governo federal como tomar desejos de alguns por realidades. As ``alianças" eventuais nas votações do Congresso entre o governo e o PT, prevê Debrun, serão conjunturais e não orgânicas.
É nessa análise dinâmica do quadro atual de forças que Lula formula com muita precisão o papel que cabe ao PT, e às outras correntes de opinião que o apoiaram: o papel de leal oposição. Manter a diferença, preservar o contraste é a melhor forma de aprofundar a democracia.
Se há um testemunho que Severo Gomes deixou é a exigência de defendermos a todo custo a capacidade de divergir e jamais interrompermos o diálogo. Sem nunca perder o humor, e a irreverência, como era seu estilo. Não é hora de, do lado que estivermos, frustrarmos as melhores esperanças do querido amigo que tanta falta nos faz.

PAULO SÉRGIO PINHEIRO, 48, é professor de ciência política, diretor do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo) e autor de ``Estratégias da Ilusão". Atualmente é pesquisador-bolsista da Fundação Guggenheim (Nova York).

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