São Paulo, quinta-feira, 13 de outubro de 1994
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Kipling retrata natureza indomada do país

JAVIER PÉREZ DE ALBÉÑIZ
DO ``EL PAÍS"

O paraíso existe. Ele dorme nas entranhas de um país doente –no coração do inferno. No pesadelo abstrato de um continente enigmático, diferente de todos os outros.
O paraíso está na Índia. É uma nação única, diferente de todas as que conhecemos. É o país de 1 milhão de insurreições. Uma terra selvagem capaz de maltratar os homens e honrar os animais e as plantas.
Os últimos tigres se refugiam nas selvas de Periyar, Corbett, Kanha e Bandhavgarh. No rio sem retorno, o Ganges, mergulham os raríssimos gaviais (espécie de crocodilos) e os golfinhos de água doce.
Nas escarpas do Himalaia se esconde o leopardo das neves. Nos terrenos úmidos de Valmiki, Manas e Dudhwa se refugiam os raros rinocerontes indianos.
Nos últimos 30 anos, o número de reservas e parques nacionais indianos passou de 80 para mais de 450. Mas a cifra é enganosa: menos de 5% do país está reservado para a vida silvestre. Cerca de 900 milhões de pessoas disputam o resto do território nacional.
As florestas são derrubadas para obter lenha. A terra e os rios são contaminados. Os grandes felinos, assim como outros animais, são exterminados pelos caçadores ilegais para vender suas peles e aproveitar seus ossos para fins medicinais. É a nova lei da selva.
A Índia é um formigueiro onde inúmeras religiões se entrecruzam: reza-se em 845 línguas, das quais 720 são dialetos. Não é de se estranhar que os ocidentais tenham problemas para entender esse país. Seu caráter altivo e arrogante, sua mistura de raças e cores fazem do país um mundo independente.
Rudyard Kipling escreveu há cem anos uma história fantástica sobre a natureza na Índia, ``O Livro da Selva" (``The Jungle Book").
O livro narra as aventuras de Mogli, ``homem entre os lobos e lobo entre os homens", e os ensinamentos que recebe de seus amigos animais –a naja Kaa, o urso Balu, a pantera Baguera, o velho lobo cinzento Aquelá...
Kipling não se esquece da figura do mal, na forma do poderoso depredador, da morte rajada: o tigre, Shere Kan.
``O Livro da Selva" é muito mais que uma história infantil. É a mistura perfeita de literatura e realidade, de paixões humanas e instintos animais. A obra encarregada de calar a boca dos que acusaram Kipling de ser conservador e colonialista. O espírito da Índia selvagem vive entre suas páginas.
O escritor nasceu em Bombaim em 1865. Seus pais, ingleses, membros ativos da sociedade colonial da época, não o impediram de viver sua infância cercado pelas fantasias e misérias da Índia.
Em direção oposta à estação Victoria, bem perto dos belos Jardins Suspensos, se encontram as Torres do Silêncio, um lugar de pesadelo que fascinava Kipling.
É o santuário do masdeísmo, a religião dos parses fundada na Pérsia pelo profeta Zaratustra. Uma zona proibida na qual se erguem três torres de cerca de cinco metros de altura. Os cadáveres de homens, mulheres e crianças são depositados em cima de grades no alto dessas torres, para que sejam devorados pelos abutres.
O porteiro de um pequeno restaurante nas proximidades das torres costuma examinar as árvores próximas às mesas de vez em quando. Certa vez um urubu deixou cair os ossos de uma mão sobre o prato de um cliente.
Cansado de tristes histórias urbanas, Kipling procurou consolo na natureza. ``Eu tinha escrito um conto sobre o trabalho florestal na Índia, um de cujos personagens era um rapaz que fora criado por lobos, como se fosse um filhote deles", recorda o escritor em suas memórias.
``Durante o sossego e a incerteza do inverno de 1892, uma vaga recordação dos leões maçônicos de minha revista infantil e uma frase de `Nada, o Lírio', de Rider Haggard, se combinaram com o eco daquele conto. Depois de delinear a idéia principal em minha cabeça, a pena assumiu o comando e percebi que estava começando a escrever histórias sobre Mogli e os animais", escreveu.
Nas selvas da Índia não existem mais meninos-lobos, mas há um deus-macaco, Hanuman, e toda uma série de fantásticos animais de carne e osso.
Uma fauna em muitos casos única, que está se reduzindo rapidamente: o número de espécies em perigo de extinção aumentou de 13, em 1952, para quase 150 hoje.
São elefantes, macacos, pavões, rinocerontes, najas, veados, pangolins, ursos beiçudos, panteras, tigres... Esses últimos são o símbolo da natureza do país, e um dos inimigos naturais de seus camponeses e criadores de gado.
O tigre é o devorador de homens, o animal mais astuto e difícil de ser capturado de todos. Na Índia, o diabo veste uma roupa listrada.
O parque nacional de Periyar, no extremo sul do país, é um bom lugar para se começar a percorrer os espaços naturais da Índia. É um dos poucos lugares onde os felinos gigantes continuam rugindo.
Distante das grandes cidades e perto do lugar escolhido pelas monções para penetrarem no continente, Periyar é um lugar mágico. Em junho passado, quando os turistas lotavam as ruas de Bombaim e Déli, não havia um único estrangeiro no parque.
Tudo estava tranquilo, tranquilo até demais. Até os guardas florestais do parque se esqueceram do seu trabalho, deixando de advertir os visitantes sobre o possível perigo de se andar fora da estrada que vai da entrada principal até o embarcadouro do lago.
Abandonando esse caminho asfaltado, pode-se penetrar nas zonas úmidas que ficam ao lado da selva. É ali que o espetáculo começa: uma manada de búfalos chafurdando na água, um grupo de três elefantes bebendo, centenas de pássaros diferentes... E a voz assustadora de um caçador solitário que iniciou sua ronda diária: o tigre. É hora de regressar ao hotel.
``O senhor teve sorte. Em Periyar não é bom brincar muito com a vida passeando pela selva", comenta, divertido, o encarregado da entrada do parque. ``O número de tigres não é grande e dar de cara com um deles é raro. Em outros parques nacionais, se isso acontecesse seria suicídio, simplesmente. Mas aqui já faz meses que ninguém desaparece."
As histórias sobre os devoradores de homens não são lendas. O tigre, sob condições normais um cavalheiro de nobre natureza, às vezes é obrigado a modificar seus hábitos e atacar pessoas. Geralmente a culpa é dos próprios homens: um tiro errado de um caçador furtivo ou o laço metálico destinado a outro animal podem ferir o rei das selvas, tornando-o incapaz de capturar suas presas naturais.
O tigre é o pior dos assassinos, o fantasma das selvas, um flagelo e fonte de terror para os camponeses que vivem nas proximidades de seu reino. Os tigres devoradores de homens têm uma surpreendente facilidade para matar suas vítimas com um golpe certeiro que quebra seus pescoços.
``Se o senhor já escutou seus grunhidos de perto é porque em algum momento o tigre esteve perto do senhor, observando-o", diz o guarda. ``Mas não se preocupe: ele só está curioso, não o vê como comida. Com certeza porque ainda não experimentou carne humana."
Perto de Kanha, o parque nacional situado no centro da Índia que inspirou Kipling a escrever ``O Livro da Selva", uma tragédia aconteceu pouco tempo atrás: um pastor de 15 anos foi devorado por um grande tigre macho quando voltava para casa com seu gado.
Se o tigre continuar matando pessoas, é possível que o governo envie caçadores profissionais em seu encalço, protegidos por capacetes de motocicleta. Ou pode ser que, como aconteceu na reserva de Sunderbans, na foz do rio Ganges, se limite a distribuir milhares de máscaras para a população.
O sistema para utilizá-las corretamente é muito simples: elas são colocadas atrás da cabeça, cobrindo a nuca. Quando o tigre ataca, sempre por trás, ele se crê descoberto e foge.

Tradução de Clara Allain

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