São Paulo, sexta-feira, 14 de outubro de 1994
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Esquerda deve patrulhar escolhas de FHC

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

U m militante do PT me fez, há alguns dias, a seguinte confissão: ``Claro que votei no Lula. Mas, se o Lula não tivesse sido candidato, eu estaria muito feliz com a vitória do Fernando Henrique."
Ele estaria feliz e comovido: pois quando é que se poderia prever a vitória de um sociólogo, de um intelectual exilado pelo regime de 64? Não seria o petismo ``light" finalmente no poder? Não estaríamos diante de um Weffort mais sabido?
Acho sinceramente que não. Mas essa alegria discreta, culpada e dividida, ocupa alguns corações petistas depois da derrota de Lula. Vários fatores podem ser lembrados para explicar tal atitude.
O primeiro, sem dúvida, é o de que está em curso uma espécie de ``reesquerdização" de Fernando Henrique. A edição da revista ``Veja", nesta semana, dá deste processo um exemplo triunfal. ``A Maria Antônia no poder", diz a revista.
Isto é, o grande foco de contestação intelectual e universitária de São Paulo, o ímpeto marxista, o brilho parisiense, a sombra tutelar de Florestan Fernandes, os seminários de leitura de ``O Capital", os conchavos com Lula em 78, os exílios, as resistências, as derrotas, oh, tudo isso foi vingado, e aqui estamos nós, os sofisticados, os esquerdistas, os ``mariantonietos", no poder –enquanto Marco Maciel, como uma flébil coluna de mercúrio, como um esqueleto silencioso, como um fiapo de concessão política, como uma fresta de fisiologismo, imperceptível, desaparece de cena.
Neste processo –uma glorificação ``ex post" do esquerdismo fernandohenriquista– intervém outro fator: é que vivemos num regime presidencialista. E a personalidade do presidente, sua biografia, seu percurso político, contam muito.
Soma-se a isto o clima de otimismo geral, protagonizado pelos empresários e investidores internacionais. Esse otimismo não é absurdo. Sempre faltou capital ao capitalismo brasileiro, e todo capital é bem-vindo.
Assim, a esquerda segue hoje o preceito do ``relaxe e goze" –coisa que o governo Collor não permitia.
Nada seria pior, entretanto, do que uma passividade do PT neste momento. A ``reesquerdização" de FHC na mídia –palavrinha detestável, essa de mídia, como bem observa Marcelo Leite em uma de suas colunas de ombudsman–, a ``reesquerdização" do presidente, dizia eu, é como a hipocrisia para La Rochefoucauld: uma homenagem que o vício presta à virtude.
Nesse sentido, qual a função que os renitentes, os chatos da esquerda devem exercer em meio ao simpático cardocismo que toma conta do país?
A primeira coisa é, certamente, aproveitar-se da ``reesquerdização"; em sua moderada sabedoria, Francisco Weffort parece já ter apontado o caminho no célebre artigo que publicou na Folha antes das eleições. Não se trata, a rigor, de adesismo. Trata-se de apostar na força que a esquerda possa ter no policiamento das opções ministeriais de FHC. Trata-se –este é o termo– de patrulhar nosso presidente, no sentido de evitar as concessões feitas ao fisiologismo durante a campanha.
A segunda coisa decorreu da primeira e já está em curso. Trata-se, e isto é doloroso, de abandonar as esperanças de que Lula seja eleito algum dia. Se o Brasil é o Brasil que conhecemos, Lula não tem, e nunca teve, a menor chance. Ponham o Enéas contra Lula, e ganha o Enéas.
Pois o Enéas é professor universitário, é louco e fala difícil. Jânio era a mesma coisa. Lula teve muita percepção ao dizer que todo o preconceito contra ele não era coisa pessoal. Erundina, pós-graduada, Plínio de Arruda Sampaio, elite de quatro costados, Marilena Chauí, que dá um banho em muito intelectual tucano, sofrem da mesma rejeição.
A derrota de Lula não se deve ao preconceito puro e simples contra o operariado. O fato de que Lula não dispõe de diploma universitário serviu como pretexto. Pretexto odioso, porque atualmente ele fala um português certíssimo.
Pretextos à parte, o problema está no PT. Não sou dos que atribuem a derrota de Lula aos ``erros" cometidos na campanha, aos xiitas da direção do partido. Acho que Lula estava condenado a perder, assim como FHC e Collor estavam predestinados à vitória.
Faço aqui uma incursão sociológica um pouco tediosa, mas creio que importante. O PT surgiu no cenário brasileiro não apenas como modelo de partido de esquerda. Surgiu como modelo de partido, ``tout court". Sua trajetória é exemplar, merece ser descrita em qualquer manual de ciência política.
Tem três fases. A fase anterior à organização partidária, ou seja, a dos ``movimentos sociais": sindicalismo do ABC, luta pela terra, Comunidades Eclesiais de Base, feministas, professores, classe média da Vila Madalena.
Houve o momento heróico de constituir em ``partido", partido político, essa inquietação social. Feito o partido, tratava-se de disputar eleitoralmente o poder.
Ou seja, temos uma trajetória clássica: movimentos sociais-partido-governo. De alguma forma, essa trajetória engripou, perdeu-se no meio do caminho.
Acho que por uma razão bem simples. O PT vive dos movimentos de base, dos movimentos organizados. Acontece que o Brasil é um país muito desorganizado. Apostando na mobilização popular, o PT terminou confiando apenas nos setores populares que estavam ``organizados": a saber, Igreja, sindicatos, funcionários das estatais, nichos de militância do PC do B e congêneres.
Ao passo que a candidatura FHC, escorada obviamente no Plano Real e na Rede Globo, proveio de outra perspectiva. Tratava-se de ``dar fim" –recurso eleitoreiro, ou pelo menos provisório– à inflação. Com isso, FHC conquistou a grande maioria do eleitorado, a grande massa dos ``desorganizados". Sua proposta era uma proposta de interesse público, de pertinência geral; já era em si um ato de governo.
Funcionou, porque apostava no interesse público, no ``geral"; escondeu o âmbito dos interesses de classe, dos interesses de corporação. Enquanto Lula insistia no campo dos ``interesses" –querendo generalizá-los numa proposta de governo–, FHC e sua máquina falavam a partir de uma ótica pública, estatal, no melhor sentido do termo. O candidato das particularidades perdeu, em suma, para o candidato das generalidades.
Se o PT tem de aprender, depois desta eleição, a ser mais ``estatal" e público, o governo FHC terá de livrar-se de seus vícios de origem: o acordo fisiológico que lhe deu consistência, a sorridente aceitação de tudo quanto é interesse privado e anti-republicano, o inconfessável pragmatismo. O fato de termos um ex-esquerdista no poder não é garantia de um futuro mais justo para o país. E, se está aberto um caminho de prosperidade a partir de agora, graças aos investimentos externos, cabe sempre perguntar: prosperidade para quem?

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