São Paulo, segunda-feira, 17 de outubro de 1994
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Cinema desvenda mistérios do Oriente

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

À primeira vista, parece que o mundo ficou de pernas para o ar. No dia 19, quarta-feira, começa a 18ª Mostra Internacional de Cinema, e Hollywood some temporariamente do mapa.
Os cinéfilos passam a conviver com nomes tão estranhos como Abbas Kiarostami, o iraniano, ou Arztavad Pellechian, o armênio –que este ano serão objeto de retrospectivas. Há mais: filmes da Coréia, Cazaquistão, Taiwan, Turquia e, claro, China.
Leon Cakoff, o diretor do evento, considera que seu principal papel é mesmo esse e não chega a ser original: ``Isso começou com o novo cinema alemão, que filmava muito em outros países. Essa curiosidade se disseminou. E é isso que eu tento imitar aqui."
Com isso, a mostra deste ano mantém a tradição de buscar autores ainda desconhecidos, sem por isso excluir as cinematografias tradicionais. Promete desde nomes europeus consagrados (como o francês André Téchiné) até fulminantes revelações norte-americanas (Roger Avary). Mas é inegável que ela retoma um trajeto do próprio cinema e se desloca para territórios até há pouco desconhecidos.
Existe uma circulação um pouco modista do prestígio. Assim, quando os chineses levavam todos os grandes prêmios nos festivais de Cannes e Berlim, em 93, a grande novidade já era Kiarostami.
Cada um desses lugares tem, para além da moda, suas próprias características. A China ou a Índia possuem há muito tempo uma produção regular. Hong Kong tem isso e, também, a maior média de público por número de habitantes do mundo. É de lá que vem o possesso John Woo, de quem a mostra exibirá o já clássico ``Fervura Máxima" (Hard Boiled).
Esse deslocamento do cinema se generaliza já nos anos 70. Desde que a TV se impôs como veículo máximo de comunicação e os satélites entraram em atividade regular, o mundo anda às voltas com uma inflação de imagens.
O que antes era vedado à imagem tornou-se escancarado. Da Bósnia ao Haiti, não há lugar sem câmeras de TV, com uma característica em comum: os lugares parecem os mesmos, impessoais, sem forma, cultura ou língua.
Se o lugar é mais próximo, a onipresença da TV aniquila todo mito. O que existe hoje dos mistérios de Paris? Nada: de Montmartre ao Quartier Latin, tudo já foi esquadrinhado pela mesma imagem chapada. O que resta da imponente Coroa britânica? Uns casos de adultério aqui e ali.
Por isso, também no Ocidente as coisas mudam. Não é por acaso que os anos 70 foram os da descoberta do japonês Yasujiro Ozu. Cineasta da câmera parada, das imagens essenciais, que mostram pouco e dizem muito, Ozu tornou-se um parâmetro obrigatório.
O que significa isso? No passado, um ``travelling" (plano em que a câmera se movimenta) era uma operação difícil. A evolução técnica de certo modo banalizou a audácia. A câmera leve, o negativo mais sensível permitem descartar boa parte das luzes, o ``steadycam" permite usar a câmera na mão sem risco de obter uma imagem tremida.
Com isso, compreende-se como o cinema do Ocidente caminha para dois extremos: ou a produção industrial movida a efeitos especiais ou o produto artesanal, que busca explorar aquilo a que a TV não pode chegar, como os pequenos filmes do francês Eric Rohmer ou dos independentes dos EUA.
Também deste lado do mundo começam a surgir cinematografias ``exóticas". Portugal é a China da Comunidade Européia: o lugar desconhecido, que de repente começa a mostrar uma vida, hábitos, maneiras de ver as coisas que escapam à mitologia tradicional (fado, viúvas, marinheiros etc.).
O mundo do cinema divide-se hoje, quase obrigatoriamente, em dois: o da reflexão sobre a TV e seus efeitos e o de um imaginário inexplorado.

LEIA MAIS sobre a Mostra de Cinema à pág. 5-4

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