São Paulo, segunda-feira, 17 de outubro de 1994
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Cineasta iraniano surpreende pela sofisticação

INÁCIO ARAUJO
DA REDAÇÃO

Quando a China era um furacão no universo do cinema, na virada dos anos 80/90, o nome de Abbas Kiarostami começou a surgir na Europa. A China, vá lá. O Irã era algo mais inesperado.
O país havia passado, nos anos 70, pela revolução dos aiatolás. Depois, por um prolongada guerra contra o Iraque. Não era, até onde se sabia, uma cultura voltada às coisas do cinema.
Kiarostami foi uma dupla surpresa. De uma hora para outra, o cinema parecia ter ganho um novo Roberto Rossellini: ``E a Vida Continua...", seu filme exibido na Mostra Internacional de Cinema em 93, mostrava duas pessoas, pai e filho, procurando um sobrevivente do terremoto de 1990 no país.
Talvez exista aí um duplo sentido. O terremoto é o que Kiarostami chama de ``ato de Deus", um fenômeno da natureza. Ao lado dele, há o destino das pessoas, de cada um dos implicados nos acontecimentos, a ruína dos que perderam parentes ou casas.
Kiarostami não filma para denunciar. Nem a Deus, nem aos homens. Se alguém quiser ver nos destroços que filma uma metáfora das questões políticas no Irã, terá de fazê-lo por conta e risco. Ele não gosta nem mesmo de tocar no assunto.
Seu cinema ajuda a desfazer o mito de um Irã meramente retrógrado, povoado de religiosos fanáticos. Quando mostra a metrópole, nos coloca frente a cidades desenvolvidas, congestionadas, turbulentas. Torna necessário aos ocidentais reconhecer que se trata, ao menos, de uma cultura desconhecida.
A elegância de seus planos não tem nada a ver com um cinema inculto. Revela um perfeito domínio das imagens.
Em 1994, Kiarostami, 65, voltou a Cannes, com ``Através das Oliveiras". Não levou a Palma de Ouro, mas novamente ganhou o reconhecimento dos cinéfilos. Nesse filme, trabalhou pela primeira vez com um ator profissional (Mohamad Ali Keshavarz), que fez o papel de um diretor de cinema. Seu problema com atores profissionais é que considera muito difícil ``uma pessoa virar outra". Ele acha que Keshavarz conseguiu essa proeza.
Kiarostami gosta de filmar itinerários. O filme que mais o influenciou foi ``A Estrada da Vida", de Fellini. ``E a Vida Continua..." já era um ``road movie" turbulento. Ao longo do trajeto em que o diretor de cinema procurava um jovem ator com quem havia trabalhado anteriormente.
Essa intervenção do diretor não é narcisista. O diretor e o filme, seus trajetos e destinos, se identificam. Ambos percorrem o país à deriva, topando com estradas intransitáveis, casas destruídas, pessoas que sobrevivem à catástrofe. O diretor toma o rumo que o filme toma e vice-versa. A realidade os arrasta. Não uma realidade que preexiste ao filme, mas que se forma junto com ele.
Esse caminho, Kiarostami percorre com elegância exemplar, sem nunca perder o sentido da beleza. Uma beleza cujo fundamento é o homem. Não se trata de um retorno puro e simples ao neo-realismo italiano. Mas a herança de Rossellini, de um cinema essencial, onde só se filma o necessário e onde se transita da realidade física do homem para a espiritual, estão lá.
Ninguém tenha dúvida: Kiarostami não é um desses meteoros exóticos, que fazem estilo, jogam poeira nos olhos do espectador e desaparecem sem deixar sinal.
É um diretor de cinema grande, simples. A retrospectiva com seis de seus filmes será, com toda certeza, um dos pontos altos da Mostra Internacional deste ano.

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