São Paulo, segunda-feira, 17 de outubro de 1994
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O Brasil da pia

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA – Alguns cartões postais funcionam como espécies de resumo das cidades que retratam. E certas cidades sintetizam nações. O Rio, por exemplo, é a cara do Brasil.
Diz-se que, irreconhecível, o Rio perdeu a condição de cartão postal do Brasil. Bobagem. A cidade continua sendo a síntese nacional. A diferença é que o cartão exibe outra estampa.
Uma estampa mais adequada, diga-se, aos dias de hoje. Houve um tempo em que a imagem que melhor retratava o Brasil nascia do chão do Corcovado e, exuberante, tocava o céu. O Cristo Redentor como que abençoava a cidade. E com ela todo o país.
A ``foto-síntese" da brasilidade podia ser encontrada também na exuberância da nudez desfilada sobre a areia das praias; ou ainda no molejo de corpos suados, entregues ao ritual do samba.
Na semana passada, a melhor fotografia do Brasil continuava no Rio. Mas estava deslocada, longe de cenários sensuais ou paradisíacos. Encontrava-se numa pia do hospital Souza Aguiar.
O país transformou-se numa imensa mulher de pernas para o ar. Ventre exposto, a nação está parindo na pia uma desgraça gerada nos gabinetes, em anos de incompetência e má fé.
Um país que chega ao ponto de negar um leito às suas grávidas, submetendo-as à humilhação e ao desconforto de dar à luz sobre o mármore gelado, não pode ser visto como a terra da ``Garota de Ipanema". O Brasil da pia combina mais com o cotidiano do medo e das balas perdidas, dos roubos e dos assassinatos, da fome e da privação, da escola e dos hospitais falidos.
A nação promíscua do Souza Aguiar contaminou até as urnas de 3 de outubro. A área de interesse do Comando Vermelho chegou ao voto.
À vontade, considerando-se parte da sociedade que deve estar representada no Congresso, os traficantes julgam-se no direito de influir nas eleições.
O grave é que o Estado paralelo do tráfico infiltrou aliados até na então inexplorada Justiça Eleitoral.
Se quiser voltar a ser o Brasil do Corcovado, o país precisa tomar vergonha. Um bom começo seria a anulação das eleições proporcionais cariocas, nas sessões que tiveram urnas violadas.
A providência não ocasionaria grandes transtornos, já que o eleitor terá mesmo de voltar à urna para escolher, em segundo turno, o novo governador do Estado. A mera recontagem dos votos pode não bastar para começar a desgrudar o costado do brasileiro da pia.

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