São Paulo, terça-feira, 18 de outubro de 1994
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Na Bienal, todos se tornam instalações

ARNALDO JABOR

Da Equipe de Articulistas E ntro na Bienal com tênis especiais. Importados, com sola amortecida. Poderei andar sem cansar. Eu sou uma instalação, por que não? Eu sou um par de olhos com tênis acolchoado e vou vogando pelo mar de ondas de Niemeyer, subindo e descendo rampas.
No primeiro andar, sou invadido por instalações dos países latinos. Do Paraguai a Barbados, todo mundo é instalador. As instalações mais subdesenvolvidas têm sabor de feira de artesanato crítico. Temos cocares de índios, temos artistas pró-Fidel e temos remos fugindo de Cuba, temos espelhinhos, miçangas, ráfia, macramé, cordames, latinhas enferrujadas, temos ossos, temos terra. Há um trôpego desejo de denúncia através dos elementos de nossa endêmica pobreza. Mudam os suportes, mas os problemas continuam.

Frios e quentes
Entre instalações e pinturas, sempre continua o dilema talento e não-talento. Mas, para os sem talento, instalação é uma mão na roda. É mais fácil de fazer, mais fácil de enganar. Ficam absolvidos por uma ``liberdade" sem rumo. Uma espécie de decoradores do apocalipse.
O que une muitos instaladores, sejam os ``frios" dos Primeiro Mundo ou os ``quentes" dos trópicos, é um intenso desejo de denúncia. Nos modernistas, havia a busca de um novo olho, havia na arte moderna o desejo de um mundo belo, mesmo que tudo em volta fosse terrível e feio.
Havia mesmo nas deformações do modernismo um secreto desejo de harmonia, a esperança de poder transformar a vida sobre a Terra.
A arte foi perdendo a esperança. Na maioria das instalações contemporâneas, há um difuso sentimento de mal-estar que transcende a qualidade do gosto ou não gosto. Há uma descrença com o otimismo da metáfora. É como se, desesperado por ver que o futuro não chega nunca, o artista quisesse construir o real ali, sem a intervenção do simbólico.
Como um espelho invertido, o mundo é modificado com elementos tirados dele mesmo, numa subversão de objetos ``desterritorializados". A denúncia das instalações em geral reproduz o inferno da organização do mundo e não sonha mais com uma harmonia possível. Ficamos com o inferno do real, como se o próprio desejo de simbolizar já fosse uma vã esperança.

Brecht e Duchamp
Mas a arte é sempre a perda de alguma coisa que não está ali. E esta ``ausência" é que nos emociona. Na arte pós-pós, há a utopia de prescindir da própria arte. A arte quer virar mundo. As instalações são maquetes de pequenas revoluções. O instalador quer nos enfiar num mundo dele, quer nos modificar de alguma maneira. E aí a coisa pega. Ali, a arte é feita ``para nós". A arte pós-pós é feita para nos ensinar algo, tem algo do V-Effeckt (distanciamento) de Brecht e do Brecht niilista da arte que foi Duchamp. Há um desejo de nos tirar o conforto com o mundo. Nas instalações, sinto que querem me modificar.
Não sinto isso diante de um Kandinski, por exemplo. Ele não queria modificar o olhador. Ele estava extraindo de si mesmo um agulheiro de cores e linhas e exprimia ali um ardente desejo por algo perdido. Sinto na arte de hoje a busca de uma metáfora mais imediata, sem a contemplação lenta da poesia. A instalação opera por metonímia, por deslocamento, e não por condensação. É como se o artista já estivesse legitimado pelo caos do mundo que ele ataca. Sob a capa de um aparente formalismo livre, o instalador quase sempre é um conteudista. O instalador quer prescindir da metáfora, mas ela sempre volta, mesmo contra sua vontade.

O sim e o não
Vejo a obra mais emocionante da Bienal: a de Nuno Ramos, com os imensos blocos de breu e parafina que criam um impacto de sim e não, de breu e sal, de liso e áspero, de ruína e ovo. Há um mistério ali que parece um grave acontecimento. Uma vez ele me disse: ``A arte não pode deixar de acusar o golpe (da grande perda do mundo)". Mas, em seu trabalho, isso não é pretexto para a fácil melancolia de acusações difusas a um mundo mau. Nuno não quer nos ensinar nada, a aura renasce ali em sua sala, muito além do didatismo fácil.
O que incomoda na instalação óbvia é que ela foi feita para mim. Não para o artista. A instalação é ``para" o receptor. A instalação quer me catequizar para quê? Com que direito um artista se arvora em médico de nossa sensibilidade? Não há consolo na arte pós-pós. O grande artista fala para si mesmo. O pós-pós acha que encontrou uma verdade. Eles não querem evocar; querem achar.
A instalação óbvia quer a luz clara dos supermercados. Stravinski dizia que a arte deve ser ``exaltante". Em geral, no artista de hoje não há exaltação da vida nunca. Apenas a propaganda de uma melancolia que desconstrói outra melancolia. A instalação ruim é tão ruim quanto o mundo que ela critica. Há a denúncia genérica de alguma coisa que não se sabe bem o que é.

As três Parcas
Entro no banheiro da Bienal. Um penetrável. O corredor em caracol nos afunda para dentro de uma sala redonda com mictórios de Duchamp iluminados por um neon roxo. Ao lado das privadas, um negro de uniforme verde ouve um ``walkman" de olhos fechados, balançando a cabeça a um rap ináudivel. Um terrível Hopper em terceira dimensão. Uma instalação sanitário-metafísica. Saio. Em meus olhos de instalador passeante o mundo vira arte. Passo pelas salas especiais e saio revigorado. Malévitch, Rivera, Lucio Fontana, Mondrian.
Finalmente, chego diante do quadro ``Solidão" –o quadro que Iberê Camargo pintou enquanto morria.
E ali está uma instalação. Só que nela falta o ``performer" que partiu. São três mulheres olhando para nós, envolvidas em mantos. São as três Parcas esperando Iberê acabar de pintá-las para levá-lo. As cores são diferentes de quase tudo que ele pintou: é um grande quadro rosa e azul, quase uma ascensão, as cores de um alívio. E Iberê deu sua última pincelada e se evolou para dentro das cores de sua última esperança. E sumiu. Ficou diante do quadro o espaço vazio de sua passagem pelo mundo. Ali está o nosso vazio, olhando pelas Parcas. Até na hora da morte Iberê pintou a vida. Não há melancolia que possa matar esta grande arte.

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