São Paulo, terça-feira, 18 de outubro de 1994
Próximo Texto | Índice

Anticlímax

Justa ou injustamente, o fato é que se configurou um anticlímax após as eleições. Ao feito inédito de um presidente da República eleito em primeiro turno segue-se, contra as expectativas, um ambiente de desmontagem de cenários e recolhimento do eleito aos bastidores.
A igualmente inédita transição sem ruptura reveste-se de um ar burocrático. O que pode se afigurar como salto de qualidade na democratização brasileira arrisca assim banalizar-se numa rotina que, esta sim, tem décadas de existência.
A frustração não é totalmente gratuita. Tem sido impressionante a queda da inflação, mas aos poucos se generaliza o sentimento de que essa proeza não é, afinal, tão meritória quanto a demonstração por atos e fatos de que os fundamentos da estabilidade foram alcançados de modo duradouro.
Esses fundamentos remontam à redefinição do Estado. Tarefa hercúlea, multifacetada, que incomoda a muitos. Mas que em absolutamente nada se parece ao minueto de delicadas composições em que se vai consumindo o período pós-eleitoral. Em que o candidato eleito furta-se a todas as definições, exercitando ao máximo a retórica em detrimento da mobilização de todos para uma profunda transformação das relações entre Estado, sociedade e economia.
Certamente o tabuleiro político ainda não foi completamente definido. Há por exemplo o segundo turno em Estados importantes, assim como está colocada a necessidade de negociar uma base de sustentação num Congresso em que o partido do futuro presidente e mesmo a aliança partidária que o elegeu parecem insuficientes para compor uma maioria sólida.
Mas há uma longa distância entre o pragmatismo político responsável e a tranquilidade passiva com que Fernando Henrique Cardoso parece no momento flertar. A menos de três meses do próximo governo, nada se sabe sobre o ajuste fiscal, sobre o fim do IPMF, sobre a estratégia de revisão constitucional, sobre o rumo da privatização. Tudo parece resumir-se à já clássica atitude de empurrar com a barriga.
O presidente eleito saiu das urnas com uma força insofismável. A confiança na estabilização econômica sem dúvida vitaminou sua candidatura. Mas, dar tempo ao tempo agora, quando, ao contrário, há um máximo de expectativas de mobilização e encaminhamento de mudanças estruturais, pode ser a receita certa para a frustração. E, daí, para o envelhecimento precoce de um projeto impregnado de esperanças de autêntica renovação.

Próximo Texto: Provar e punir
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.