São Paulo, quarta-feira, 19 de outubro de 1994
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Lógica eleitoral X lógica do poder

MARIO CESAR FLORES

Abafada a fogueira eleitoral, pode-se fazer agora algumas conjecturas livres da paixão da disputa sobre a hipótese vencedora e se tivesse sido outro o veredicto das urnas.
As desbotadas cores ideológicas do século 20 ainda influenciam, mas paulatinamente esquerda e direita vêm perdendo seus matizes mais fortes. Até mesmo no campo eleitoral, aberto a ilusões e mitos, o espectro ideológico se estreita: nenhum candidato assume a extrema esquerda revolucionária e a extrema direita reacionária, ambas inexoravelmente autoritárias, compartilhando perspectivas comuns, como são suas xenofobias e concepções estatizantes e corporativas.
A agonia da extrema direita teve início com a derrota dos regimes nazista, fascista e militarista da Alemanha, Itália e Japão nos anos 40 e se prolongou com Franco e Salazar até os 70. Esse modelo e os autoritarismos da Guerra Fria parecem não mais ser viáveis no futuro previsível.
Quanto à extrema esquerda, as cinzas do socialismo real não esfriaram de todo e existe ainda uma brasa: Cuba. Mas o mundo mudou o suficiente para assegurar-nos que não há mais espaço para a revolução fundamentada na luta de classes e muito menos na luta armada: se por um lado são inverossímeis hoje as democracias essencialmente burguesas do passado, por outro tampouco são viáveis as democracias populares socializantes, nas quais a prática democrática sempre foi mais retórica do que realidade.
A tônica atual situa o epicentro ideológico do poder entre o centro-direita e o centro-esquerda, combinando o capitalismo com justiça social e distribuição da riqueza, mais próximo da esquerda em alguns assuntos e do centro em outros, especialmente os econômicos que, de qualquer forma, serão regidos menos pelas normas selvagens do século 19 e mais pelas que confiram à ordem econômica clara responsabilidade social.
Nesta combinação, única via capaz de inserir a massa no processo democrático sem populismo demagógico e no usufruto saudável da riqueza nacional, cabe ao Estado brasileiro um papel importante.
Não tanto, como ocorreu dos 1930 aos 70, o papel de empreendedor econômico, cujas distorções alimentaram os cartórios clientelistas e o corporativismo público, mas o de árbitro da compatibilização entre a unidade e a soberania nacional, de um lado, e a integração econômica e financeira internacional, do outro, entre as exigências da justiça social e do mínimo indispensável de planificação com seus instrumentos de indução e as da eficiência econômica e do livre funcionamento do mercado, entre o gasto social e a saúde financeira do Estado. Enfim: árbitro da atuação social do capitalismo num regime de democracia de massa.
Voltando ao início: como se situam nesse contexto o presidente eleito e seus partidários e como se situariam um e outros, se o resultado da eleição tivesse sido o inverso?
Comecemos pela hipótese Lula e PT. Submetida à lógica do poder de um Estado de Direito de democracia representativa e submetida a contingenciamentos e correlações de forças nacionais e internacionais de toda ordem, a prática do poder se fixaria naturalmente numa faixa de esquerda próxima e parcialmente sobreposta ao centro-esquerda social-democrata.
O cardápio nacionalista seria privilegiado relativamente à integração econômica e o ritmo do processo de privatização seria reduzido, mas o capitalismo não seria anatematizado e nada aconteceria de muito extraordinário no campo da conduta econômico-social que a cultura política classifica como de esquerda.
O sectarismo mais à esquerda desses hipotéticos vencedores talvez tentasse impor saltos audaciosos, mas a época rejeita paradigmas revolucionários, mesmo os ditos democráticos –geralmente ilusórios já que até mesmo a revolução proclamada democrática induz reação cujo controle exige autoridade forte.
Aliás, cedo ou tarde alguém haverá de avaliar se as posições entendidas como radicais contribuíram para motivar um eleitorado desejoso de mudanças, mas não de saltos.
Na hipótese que se configurou vencedora, submetida aos mesmos parâmetros, a prática do poder será provavelmente pautada por posições de centro-esquerda, sem concessões ao reacionarismo conservador –o grande perdedor da eleição de 1994– e à utopia socialista.
Ela buscará o equilíbrio entre o social e o econômico levando em alta consideração a importância da economia para o social, buscará o equilíbrio entre os ideais nacionalistas e a maior integração internacional, cujo ritmo e abrangência serão ajustados às conveniências da sociedade e não apenas às de suas partes diretamente beneficiadas.
A hipótese vencedora reduzirá a dimensão empresarial do Estado, mas não abrirá mão de sua capacidade regulatória –talvez até procure ampliá-la–, indispensável à viabilização do desenvolvimento com melhora dos indicadores sociais, num ambiente de economia capitalista ainda envenenado por alguns resíduos do capitalismo selvagem, mais resistentes em países socialmente atrasados.
Em suma: não haveria nada similar ao furor revolucionário na hipótese vencida, nem haverá reacionarismos ou aventuras liberais sem controle, na vencedora.
Existem diferenças entre elas, mas existe também uma similitude de desejo de mudança e alguma justaposição, se não de métodos, pelo menos de metas, que nos permitem admitir haver campo para a cooperação, uma vez uma e outras livres dos resíduos das perspectivas ideológicas à esquerda e à direita, que a virada do século já não aceita.
Superadas as injunções da eleição, a lógica do poder, com seus contingenciamentos e confluências, haverá de aproximar, ainda que não de confundir, o que a lógica eleitoral separou.

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