São Paulo, quarta-feira, 19 de outubro de 1994
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Vacina bombástica

VICENTE AMATO NETO; JACYR PASTERNAK

Não dispomos de boa vacina contra a Aids e não estamos perto de contar com ela
VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK
Para prevenir muito efetivamente a infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), motivador básico da síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids), almejamos ardentemente o advento de fármaco capaz de atingir de forma cabal o citado microorganismo ou, também, de vacina preventiva adequada.
Hoje não contamos com esses recursos e estamos fracassando. Educar e bem informar são agora os instrumentos úteis, mas com eles os sucessos não aparecem. O mal progride, motivando enormes percalços médico-assistenciais, econômicos, legais, incluindo os trabalhistas e emocionais.
Sem dúvida, a dificuldade reside no fato de que há, fundamentalmente, necessidade de implorar a mudança de comportamento de certas pessoas e, no âmbito da saúde pública, isso afigura-se impossível. Coibir o relacionamento sexual irresponsável e a toxicomania é extremamente difícil, parecendo algo irrealizável.
A sífilis está aí, abundante, sem constituir a mazela de outros tempos. As más composturas sexuais persistem; contudo, a penicilina e outros remédios mudaram o panorama e essa enfermidade não é mais focalizada de forma proeminente.
Muitas instituições e cientistas buscam o medicamento sonhado e a vacina eficaz. Não obstante, convenhamos, só ocorreram êxitos parciais e delineamento de caminhos.
Agora, quase que diariamente, veículos leigos de divulgação científica fazem menção a estudo que terá lugar, no Brasil, sobre um determinado tipo de imunizante referente ao HIV. Cabem, a propósito, comentários e ponderações.
– A vacina em questão contém polipeptídeo, que é componente do vírus. Com a aplicação dele espera-se que fique estimulado o sistema de defesa imunológica do organismo, sendo marcador mais singelo disso a produção de anticorpos, já existentes nos infectados e doentes, parecendo não terem boa utilidade na contenção do processo.
– Se o elemento básico não é microorganismo vivo, cria confusão a repetida citação quanto o eventual risco de contaminação, com menção à promessa de assistência posterior, se necessário. Caso estejam incluindo na cautela aquisição ligada às condutas desaconselhadas, não vemos sensatez nisso.
– A vacina que primeiro será estudada (V-108; ``United Biomedical Inc.-UBI") não tem rigoroso nexo com tipos do HIV vigentes no Brasil, configurando circunstância digna de cuidadoso enfoque, pois trata-se de premissa tida como muito importante, conforme vêm afirmando determinados pesquisadores.
– Praticamente não são citadas as subvenções financeiras quiçá alocadas pela empresa interessada e destináveis a indivíduos e instituições. Este item requer esclarecimentos objetivos, a fim de que a comunidade em geral fique bem inteirada a propósito. Grupos e pessoas reivindicaram efusivamente participação como executores, sugerindo motivação de caráter material.
– O estudo é bastante simples. Com ele, há o intuito de saber se o preparado não promove reações adversas e, cremos, se gera anticorpos. Pode ser efetuado sem dificuldades e o estardalhaço em vigor retrata exagero, chegando às raias do grotesco. A investigação, singela, é realizável de maneira fácil e a repercussão presente serve para colocar em foco profissionais e dirigentes pequenos, incapazes de obter notoriedade por meio de outras ações.
– Partes da cápsula do HIV costumeiramente estão constituindo a essência das vacinas idealizadas. Esse caminho, como conclusões já demonstraram, não está animando. Algo mais, dizem, será preciso. Assim, o que sucederá no Brasil não passa de mera repetição, incapaz de justificar entusiasmo ou perspectiva de progresso.
– Em termos gerais, no que concerne às vacinas pretendidas, lembramo-nos de um detalhe. O elemento estimulante, frequentemente empregado, não é o HIV ativo, atenuado, ou germe parecido com ele. Porém, a administração de parte do agente causal, mesmo sem viabilidade, eventualmente é apta a permitir evento imunológico imprevisível após infecção pelo HIV, valendo rememorar que não conhecemos todo o mecanismo de atuação desse microorganismo. Imunizante que se considerava como digno de atenção para evitar a doença de Chagas saiu de cena por motivo dessa ordem, uma vez que, identicamente não sabemos totalmente como o parasita que tal enfermidade participa no organismo, imunologicamente falando.
Em suma, nada de relevante terá lugar e o espalhafato criado é criticável. Não dispomos de boa vacina e não estamos perto de contar com ela. O público em geral merece essa informação, ao lado da citação de que a pesquisa a ser praticada no Brasil é pouquíssimo expressiva e por demais parcial.

VICENTE AMATO NETO, 65, médico-infectologista, é professor titular e chefe do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo). Foi secretário da Saúde do Estado de São Paulo (governo Fleury).

JACYR PASTERNAK, 53, médico-infectologista, é chefe de gabinete da Superintendência do Hospital das Clínicas e membro do Grupo de Transplante de Medula Óssea do Hospital Albert Einstein.

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