São Paulo, quinta-feira, 20 de outubro de 1994
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Viva e deixe viver

OTAVIO FRIAS FILHO

Uma das primeiras coisas que se aprendem, na profissão de jornalista, é que a família real britânica é notícia. Trata-se de resquício que ficou, por hábito, de uma época em que a Inglaterra tinha relevo internacional.
Mas há muito tempo que a Inglaterra é um país ``em vias de subdesenvolvimento", como dizia um filme do grupo Monty Python, e o noticiário sobre a Coroa no entanto continua crescendo.
Com os escândalos em sucessão, parece que a coisa chegou a um paroxismo. No afã de extrair seus últimos dividendos, a imprensa está apressando a morte da galinha dos ovos de ouro.
Nas últimas décadas, conforme afundavam os vestígios do Império-onde-o-sol-nunca-se-põe, multidões de basbaques sonharam mais do que nunca com o conto de fadas transmitido pela TV e encenado ao vivo, com regularidade turística.
O espantoso na atual série de revelações não é, porém, o que elas possam conter de chocante ou medonho, mas justamente de prosaico. Ricardo 3º e Henrique 8º, para ficar em dois casos mais célebres, cometeram, parece, verdadeiras atrocidades.
Mesmo o rei que abdicou em nosso século, a fim de se casar com uma americana divorciada, era um excêntrico, um romântico incurável. Não é o caso dos atuais personagens, estranhamente burgueses, nada heróicos nas suas fraquezas e escapadelas.
Andy Warhol decretou a conhecida frase sobre todo mundo ser famoso por 15 minutos; parece que o contrário também é democraticamente verdadeiro, de modo que aos famosos cabe em contrapartida igual lapso de vulgaridade.
Consulte, por exemplo, a lista de namorados atribuídos à Lady Di, como gosta de dizer a imprensa: um professor de equitação, um marchand, o dono de uma concessionária de automóveis... Pode haver sequência menos principesca?
E não é puro melodrama o desabafo que se relata no fogo-cruzado das biografias, quando Sua Alteza chegou a declarar-se uma prostituta, chamando a si, como no mais barato dos folhetins, os dois extremos da auto-imagem feminina?
O sonho acabou para os basbaques, mas para os príncipes é a vida que começa! A mulher de Menem e a de Fujimori reivindicam o direito a dar escândalo, estão gravemente atacadas pela epidemia de narcisismo que assola o mundo.
Diferente, talvez oposto é o caso inglês. O que eles reclamam é tomar sorvete na rua, dizer palavrões, cair, enfim, no mais comum dos anonimatos, experimentar as atribulações mais corriqueiras.
Sendo essencialmente hipócritas, a punição republicana que os britânicos reservaram a seus tiranos foi submetê-los, até a última geração, a esse circo de cavalinhos, aos caprichos da autoridade turística.
Os príncipes ensaiam agora a sua Revolução Gloriosa. O janota Charles é prova viva de que o culto ao sangue nem sempre dá bons resultados, mas na nossa época politicamente correta os monarcas, especialmente quando idiotas, têm direitos: não divinos, mas simplesmente humanos.
Os Plantagenetas, ou coisa que o valha, já sofreram bastante. Na Grã-Bretanha, a república pelo menos libertaria os soberanos.

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