São Paulo, quinta-feira, 20 de outubro de 1994
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O dente agudo da serpente

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – É cômodo, mas sobretudo é cínico, o governo federal considerar a guerra do tóxico um problema local do Rio, cuja solução deverá caber aos governos estadual e municipal. Separando a coisa: há a violência generalizada que não é exclusividade do Rio, mas igualmente distribuída pelas grandes cidades brasileiras. E há a guerra do tóxico, que é um episódio à parte e tipificado.
Na realidade, tem tudo de uma autêntica guerrilha urbana, das muitas que explodiram em diversas cidades do mundo, por motivos ideológicos, territoriais ou religiosos.
Como o Rio não produz coca nem armas, ele apenas oferece cenário e figurantes para a guerrilha que, na verdade, se desenrola em outro patamar: o controle do mercado, a garantia do abastecimento e da distribuição da droga.
Não são os bandidos que matam e morrem os beneficiários desse mercado que se amplia apesar da repressão que só é exercida em cima do varejista, poupando-se o tubarão da droga e o consumidor da droga.
O cinismo consiste em atribuir ao traficante a responsabilidade pela chaga social que não é o tóxico em si, mas a violência que o acompanha. Matar traficante equivale àqueles reis que mandavam cortar a língua dos mensageiros que traziam más notícias: não resolvia nenhum problema e aumentava a taxa de mortalidade do reino.
O mesmo cinismo é evidente quando se sabe que a polícia funciona como um ``traficante do lado de cá", ou seja, é varejista da lei, mata e morre sem levar nenhum lucro a não ser o da sobrevivência imediata, que só se torna suportável quando é complementada pelo próprio crime através do suborno ou da chantagem.
O nó é trágico e não pode ficar na esfera local do município ou do Estado. Não se invoca a intervenção, que é medida apenas política. Invoca-se o dever do governo federal de considerar a guerrilha do tóxico, cujo núcleo principal está no Rio, um caso nacional, tal como foram considerados casos nacionais (e até internacionais) as batalhas urbanas de Argel, de Beirute, de Sarajevo.
Pouco a pouco, a população civil está passando para o lado do traficante. É assim que começam as revoluções.

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