São Paulo, sábado, 22 de outubro de 1994 |
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FHC adota visão voltaireana sobre Deus
ANTONIO CALLADO
Mas, no ``Dicionário Filosófico" e nas ``Cartas Filosóficas", em ``O Século de Luís 14", nas suas polêmicas, nas suas prisões e seus amores, na montanha de cartas que escreveu a meio mundo e nos romances como ``Cândido", ``Micromegas", ``Zadig", é muito mais lido e amado em toda parte do que Racine. Por pouco que se haja lido de Voltaire e sobre Voltaire, o que se guarda dele é a impressão de que ainda vive. Acho que porque ele gostou como poucos de estar vivo. Vejam o seguinte: Voltaire ficou célebre pela fúria com que combateu a Igreja (``ecrasez l'infâme!"), os jesuítas em particular, e as demais formas de religião organizada. No entanto, sua luta foi sempre contra o fanatismo, a intolerância, a arrogância das crenças que professam saber tudo e exigem submissão dos fiéis e queima dos infiéis. Esgotada sua fúria contra o fanatismo, Voltaire era apaixonado demais pela vida para não achar que ela só poderia ter sido inventada por alguma entidade que jamais conheceremos, mas que não se daria o intenso trabalho da criação sem boas intenções. É de sua autoria o verso ``Si Dieu n'existait pas, il faudrait l'inventer", e que podemos traduzir, de forma um tanto livre, assim: ``Se Deus não existisse, o jeito era inventá-lo". Voltaire era, em suma, o que se chama um deísta. Escrevendo, aos 77 anos, a Frederico-Guilherme da Prússia, fez essa profissão de fé: ``Só os charlatães têm certezas. Nós nada sabemos dos primeiros princípios. É pura extravagância definir Deus, os anjos, os espíritos e saber precisamente porque Deus formou o mundo". Mas ele estava certo de ``uma inteligência suprema, um poder imenso, uma ordem admirável". Do ponto de vista do comportamento, dizia que ``o mais seguro é jamais fazer o que quer que seja contra nossa própria consciência. Graças a esse segredo podemos desfrutar a vida e jamais temer a morte." Nosso presidente eleito, Fernando Henrique Cardoso, falando domingo passado a Cosette Alves, na Revista da Folha, deu provas do que poderíamos chamar um sereno voltaireanismo. Cosette disparou a pergunta inevitável: ``Afinal, o sr. acredita em Deus?" O presidente replicou: ``Seria uma pretensão, hoje, dizer que não. Porque na verdade não há uma explicação para muita coisa que existe, para o infinito, para o amor, a origem da vida. Então eu acho que é um ato de humildade intelectual acreditar." Cândido Chaplin Tomei conhecimento superficial dela, para melhor ler ``Cândido", e fiquei espantado de ver como o mundo moderno nasceu das suas calamidades, suas carnificinas e seus estupros. De 1756 a 1763 engalfinharam-se e estriparam-se as grandes potências da Europa. De um lado estavam França, Áustria, Suécia e Rússia contra a Prússia, o Hanôver, a Grã Bretanha. Quando a sangueira se estancou, a Grã Bretanha tinha ganho da França o direito de dominar a Índia e colonizar a América do Norte. Estava fundado o Império Britânico. Como bom homem do povo, o herói Cândido não tem a menor noção do que está acontecendo nos campos de batalha. Só sabe que, no castelo em que serve, está apaixonado por Cunegonda, sinhazinha do castelão, e fascinado pela filosofia do mestre alemão Pangloss, que afirma, quaisquer que sejam as circunstâncias, que tudo está da melhor maneira possível no melhor dos mundos imagináveis. Cândido é surrado e expulso do castelo porque beijou Cunegonda, e, mal ganha a estrada, chegam ao castelo soldados que batem ou matam a fio de espada quem reclama e, ao que se imagina, matam também Cunegonda, depois de estuprá-la fartamente. Essa a história que conta a Cândido um irreconhecível Pangloss, sovado, caolho, aleijado, mas que continua a achar, para não perder suas teses, que continua tudo às mil maravilhas num mundo perfeito. Não haveria como resumir as andanças de Cândido que a sorte leva a Buenos Aires, ao Paraguai das reduções jesuítas, ao Eldorado da Guiana, de onde sai carregado de ouro e pedras preciosas, para afinal casar com uma Cunegonda que tinha sobrevivido a mil horrores e que se transformara, por isso, num pavor de se ver. E Cândido, alegre por ter de novo a companhia dela e de Pangloss, chega à luminosa conclusão de que o homem nasceu para cultivar seu jardim. ``Cândido", de Voltaire, foi o primeiro longa-metragem de Chaplin que o mundo assistiu. Texto Anterior: Bomba! Bomba! Não arrocha que eu gozo! Próximo Texto: ``Rosas Selvagens" iguala destino e desejo Índice |
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