São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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Tratados internacionais são pouco empregados como lei

EUNICE NUNES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ninguém no Brasil, hoje, sabe dizer quais leis estão ou não em vigor. O problema começa com a profusão de leis que alteram umas às outras sucessivamente, provocando tal confusão que no fim não se sabe mais o que vale ou deixou de valer.
Agrava-se com as normas que caíram em desuso, as que deixam de ser aplicadas por falta de regulamentação e o esquecimento dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
Estes últimos, com raras exceções (como a Convenção de Genebra sobre cheques), são quase letra morta. Muitas vezes, nem mesmo aqueles que poderiam beneficiar-se com a sua aplicação se lembram de usá-los.
É o caso das pessoas que podem ser presas em razão do descumprimento de um contrato ou por não pagar dívida. Se fundamentassem sua defesa em dois pactos internacionais em vigor no Brasil desde 1992, teriam boas chances de ficarem livres da cadeia.
O Pacto de São José, que dispõe sobre direitos individuais, diz que ``ninguém será preso pelo não pagamento de dívidas".
O Tratado Internacional de Direitos Civis e Políticos estabelece que ``ninguém será preso pelos simples fato de não poder cumprir um contrato".
A questão foi trazida à baila em dois recentes julgamentos do Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo (1º TAC).
E não foi mérito do advogado de defesa do réu. Foi um juiz que levantou a lebre e iniciou a discussão sobre a validade do pedido de prisão à luz dos dois tratados.
Um dos julgamentos referia-se a uma pessoa que havia adquirido um carro com financiamento bancário, não pagou e não entregou o carro ao banco.
A falta de pagamento ensejou a decretação de sua prisão civil em primeira instância.
No recurso analisado pelo tribunal, o juiz Antonio Carlos Malheiros entendeu que o devedor não podia ser preso. Ele fundamentou sua decisão no Pacto de São José, que proíbe a prisão pelo não pagamento de dívida.
``Tratado internacional ratificado pelo Congresso tem força de lei interna. No caso, reconheço que a dívida existe. Mas o devedor deve responder com outros bens. Não ir para a cadeia", afirma Malheiros.
Seus companheiros de câmara concordaram com a aplicação do pacto. Porém, entenderam que o caso levado a julgamento não tratava de dívida e sim de depósito (o réu era depositário do carro, que na verdade pertencia ao banco).
``Por se tratar de depositário infiel, e não de devedor, cabe a prisão. A Constituição Federal permite a prisão civil do depositário infiel e daquele que deixa de pagar pensão alimentícia", concluíram os juízes Manoel Mattos Faria e José Araldo da Costa Telles.
O outro processo analisado pelo tribunal envolvia prisão decretada pelo descumprimento de contrato.
Segundo o juiz Malheiros, o réu não poderia ser preso, pois o Tratado Internacional de Direitos Civis e Políticos veda a prisão em tais situações.
Novamente ele foi vencido pelos seus companheiros de câmara.``Quando o tratado diz `não poder cumprir contrato' refere-se a caso fortuito (furto do bem, por exemplo) ou força maior (terremoto, por exemplo)", interpreta o juiz José Araldo Telles.
``Só se o réu provasse que não cumpriu o contrato por força maior ou caso fortuito é que ficaria livre da prisão", explica o juiz Manoel Mattos Faria.
Mas tanto José Araldo como Manoel Mattos defendem a aplicação dos tratados internacionais nos casos concretos levados à apreciação do Judiciário. ``São leis que devem ser cumpridas em nosso território", afirmam.

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