São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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A família como instituição econômica - 2

EDUARDO GIANNETTI

No artigo do último domingo, argumentei que a formação de capital humano –o investimento na saúde, educação e capacitação profissional das novas gerações– é um processo fortemente influenciado por valores e instituições pouco estudados na teoria econômica. Diante do surpreendente sucesso educacional de países como a Coréia do Sul e grupos sociais como os asiáticos na Califórnia, a hipótese que vem se fortalecendo é a de que nada substitui a família.
Exceções, é claro, existem. Cada família é um universo à parte e toda generalização está fadada a ser parcialmente injusta. O que vale no atacado nem sempre é o caso no varejo. Mas a lei dos grandes números –baseada em agregações estatísticas– permite fazer algumas generalizações de grande alcance. Há fortes evidências de que nem todos os tipos de estrutura e arranjo familiar garantem resultados positivos para os seus elos mais fracos –crianças e idosos.
A primeira constatação é o enfraquecimento da coesão familiar e da família nuclear intacta –pais biológicos casados + filhos– ao longo do pós-guerra. o fenômeno é universal e só tem paralelo, pela sua importância histórica, no enfraquecimento da família extensa na virada do século. O exemplo norte-americano é o mais dramático.
Do final da 2ª Guerra até os anos 60, mais de 80% das crianças nos EUA passavam toda a infância e cresciam em famílias intactas. A coesão familiar era forte e a expectativa de vida dos pais elevada. Em 1974, contudo, a ascensão da família quebrada e os sinais da mudança já estavam claros –pela primeira vez o divórcio ultrapassou a morte do pai ou da mãe como principal causa de dissolução da família intacta.
Atualmente, nos EUA, metade dos casamentos termina em divórcio e 27% dos nascimentos ocorrem fora do casamento. Como resultado, menos da metade dos filhos passa toda a infância em famílias intactas. Embora tenha aumentado nos últimos anos, a taxa de divórcios no Japão é ainda cinco vezes menor do que nos EUA e só 12% dos casamentos na Coréia do Sul terminam em divórcio.
Que essas mudanças representem mais chances para os adultos na busca da felicidade e maior liberdade para as mulheres, poucos discordariam. O problema é o conflito entre gerações. O interesse legítimo dos adultos em investir cada vez mais na sua própria felicidade –trabalho, carreira e vida amorosa– pode estar sacrificando o interesse legítimo dos filhos em receber um investimento adequado de tempo, atenção e suporte emocional por parte de seus pais.
Os indícios de que ``os pequenos sofrem com a tolice dos grandes" (La Fontaine) estão se acumulando. Independentemente do nível de renda familiar e da escolaridade dos pais, as crianças em famílias quebradas nos EUA têm duas vezes mais probabilidade de não completar o 2º grau. Do total de alunos pertencentes a famílias intactas, 33% têm ótimo desempenho escolar. Nas famílias quebradas, a proporção é de apenas 17%.
Uma pesquisa feita na Inglaterra, com crianças nascidas em 1958, mostra que a sua chance de ingressar na universidade cai pela metade quando os pais vivem separados. Curiosamente, o desempenho escolar das crianças não piora nas famílias intactas em que ocorre a morte de um dos pais, mas permanece muito abaixo da média nos casos em que a mãe –ou o pai com a guarda dos filhos– volta a se casar. A liberdade de uns pode ser a ruína de outros.
Outros indicadores fortemente correlacionados com a estrutura familiar são: gravidez precoce, delinquência juvenil, suicídio de adolescentes e taxa de desemprego. Nos EUA, por exemplo, 70% dos delinquentes juvenis são oriundos de famílias quebradas. A coisa chegou a tal ponto que cerca de 25% das escolas norte-americanas de 2º grau em áreas urbanas já instalaram detector de metais para coibir o uso de armas pelos alunos no recinto da escola.
E o Brasil nisso tudo, a quantas anda? A tradição familiar brasileira, independentemente de condição social, sempre se caracterizou por uma doce, vigorosa e alegre anarquia –para os adultos, é claro. Até que ponto isso tem ajudado no processo formativo e educacional das crianças ou no bem-estar dos idosos é uma outra –e desagradável– questão.
A tensão entre ordem e desordem na família brasileira é bem captada pelo comentário de Antonio Candido sobre o padrão familiar retratado nas ``Memórias de um Sargento de Milícias", o grande romance de Manuel Antônio de Almeida: ``Ordem dificilmente imposta e mantida, cercada de todos os lados por uma desordem vivaz, que antepunha vinte mancebias a cada casamento e mil uniões fortuitas a cada mancebia".
Em termos estatísticos, no entanto, pouco se sabe. Felizmente, a lacuna começa agora a ser preenchida graças ao esforço louvável e pioneiro da Unicef no sentido de levantar e divulgar dados empíricos sobre a questão. Os primeiros frutos deste trabalho deverão aparecer em breve com a publicação da coletânea ``Família Brasileira, a Base de Tudo", organizada por Sílvio Kaloustian.
A evolução da estrutura familiar brasileira nos anos 80 reflete, em larga medida, as tendências observadas nos países desenvolvidos. Caiu o número de casamentos e cresceu 55,8% o de divórcios e separações entre 1984 e 1990. Isso significa que atualmente cerca de 21% dos casamentos no Brasil terminam em ruptura. O problema é que com o crescimento das uniões consensuais –o equivalente familiar da economia informal– fica difícil saber a real situação.
Dois fatos em particular chamam a atenção nos dados da Unicef. O forte impacto da estrutura familiar sobre o nível de renda do domicílio e a incidência da pobreza infantil; e o tamanho médio das famílias em situação de extrema pobreza. Enquanto as famílias de maior renda têm em média 3,3 membros, nas de menor renda a média sobe para 5,1 membros.
A conclusão básica a que se chega é que, também no Brasil, o enfraquecimento da família intacta vem tendo efeitos negativos sobre os seus elos mais fracos. Mais do que a escola, a família é a principal responsável pela transmissão social de um sentido de valores que induza os mais jovens a desenvolver suas capacidades morais e cognitivas.
A experiência mundial sugere que nada substitui a presença de pais que cooperem ativamente na criação dos filhos e valorizem o empenho escolar. Nenhum governo ou funcionário pago –como chegaram a propor alguns adeptos da ``educação científica", como Platão e Marx– pode fazer isso pela sociedade. A família é a primeira, a menor e a mais importante escola.

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