São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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A loira que roubava beijos de Senna atrás dos boxes revela sua vida na F-1

ADRIANE GALISTEU
ESPECIAL PARA A FOLHA

Apresento aqui um trecho do meu livro "O Caminho das Borboletas", totalmente dedicado a Ayrton Senna. É a minha vida com ele, que foi o momento mais feliz que eu tive.
É também um presente aos fãs e a todas as pessoas que o amaram. Quero mostrar a elas como ele era.
Por isso, mostro muito bem no livro a divisão entre o Ayrton Senna, o corredor de Fórmula 1, e o Béco, meu namorado.
O nome do livro tem a ver com um lugar muito especial em uma fazenda em Campinas, onde fiquei por um tempo depois que tudo aconteceu.

PRIMEIRA VITÓRIA
- O Ayrton teve um acidente.
A notícia me recebeu na porta do autódromo. Eu tinha sido despertada pelo vrum-vrum das máquinas, o warm up já rolando, meti uma roupa, rapidinha, peguei carona com o Marquinhos Magalhães Pinto e cheguei descabelada. Mais descabelada ainda fiquei ao saber dele.
Corri para o boxe da McLaren, nada. Tentei o motorhome. Olha lá ele, bem ao lado, já dentro do carro reserva, uniformizado dos pés à cabeça, pronto para voltar à pista. Alívio. E o acidente?
- Nada, nada - despistou.
Um mecânico me socorreu: machucou a mão, mordeu a língua, saiu um pouco de sangue da boca.
- Ainda bem que você não estava aqui, pra desmaiar - brincou ele, mostrando que estava com o astral lá em cima.
Entre os preparativos e a largada, ele ficou entregue a outro de seus anjos da guarda, que eu vim a conhecer também naquele dia: o Joseph, um austríaco que trabalha na infra da McLaren e que além de servir como uma espécie de escudeiro para os pilotos, é um expert em massagens curativas e em poções mágicas.
Os 60 minutos que precedem a largada são aquele corre-corre entre os boxes e os motorhomes, não há quem não tenha ímpetos de comer as unhas ou arrancar os cabelos. Posso dizer que conheci, naqueles minutos, o significado da palavra nervosismo. Curiosamente, minha melhor terapia era quem mais devia estar ansioso: Béco surgiu sei lá de onde, faltando 20 minutos para a bandeirada, pegou-me pela mão e me convidou a ir para o boxe da McLaren com ele.
- Pro boxe? - estranhei.
Nem respondeu. Saiu me arrastando diante da arquibancada, que explodia de entusiasmo. O boxe da McLaren era um ovo, onde mal cabiam meia dúzia de mecânicos e os pilotos. Como se fosse um ato proibido de dois meninos, ele me fez esconder com ele atrás de um tapume de papelão e me sapecou um beijo:
- É hoje!
- É hoje! - eu não conseguia encontrar nada senão o óbvio para empurrá-lo para a vitória.
Com o polegar direito do tamanho de uma bola de tênis, mas devidamente enfaixado, Ayrton entrou na pista para vencer. Joseph, o massagista, ajudou: o carro, também; mas eu gostaria de reivindicar o meu modesto mérito. Na minha estréia na Fórmula 1 como namorada dele, dei sorte.
Eu e o Oscar Guerra rezamos mais do que o papa. Mas aí, ao final, corri da cabine da Globo para o pódio, disparada mesmo, sem fôlego. Ouvi ainda longe os acordes do hino nacional brasileiro, lágrimas rolavam pelo meu rosto enquanto eu ainda tentava me aproximar do pódio, mas eu só pude vê-lo depois, na reprodução daquela cena típica da vida dele, a multidão compacta que caminha e empurra, lá no meio, o impávido boné azul. Ao me ver, ele abriu passagem com os cotovelos e me confidenciou ao ouvido coisas muito mais doces do que aquelas frutas suíças:
- Foi muito bom... Você sabe que foi pra você, não sabe?
Diante do Clube Sporting, a passadeira vermelha, o público igual ao do Oscar e as câmeras fotográficas esperavam pelos príncipes de Mônaco. Os que dão expediente o ano todo. E o que potinfica no dia do GP - nesse, acompanhado de sua princesa, "a misteriosa loira brasileira". Claro que, na correria do banho e da escolha da roupa, sofri a típica doença feminina: achei que não tinha roupa. Ele, elegante com seu smoking, mostrou como a vitória produz homens pacientes e tolerantes. Pois ele se encarregou:
- Eu decido.
E decidiu-se por aquele tal vestido bem pouco protocolar, com salto alto e meia grossa.
Mas... - tentei argumentar.
- Está linda.
O auditório estava apinhado. Ficamos bem no centro da mesa principal. Eu olhava para o lado e via o príncipe Albert. Virava para o outro, Michael Douglas. E aquela menina bonita? Ah, a Cindy Crawford, com seu namoradão grisalho e charmosérrimo, Richard Gere. De repente, quem está olhando para mim, quase em frente? A princesa Carolina. Faço um aceno protocolar com a cabeça e abaixo os olhos, morta de inibição. Nunca se viu tanta concentração per capita de beleza e fama. É que, naquele ano, o GP de Mônaco coincidiu com o Festival de Cinema de Cannes e todo mundo acorreu para a boca-livre. Sem falar das estrelas do próprio circo: Niki Lauda, Jackie Stewart, Ron Dennis.
O garçom veio no servir:
- Champagne, mademoiselle?
- Merci, Coca-Colá.
Outro homem teria me dado um beliscão por baixo da mesa, mas o meu Béco foi solidário com a minha criancice:
- Então, duas Coca-Colás.
Galvão Bueno, subitamente ameaçou um piripaque. Afrouxou a gravata, botou a mão no coração, saiu para tomar ar fresco. Ayrton se preocupou, assim como nós, da turma de brasileiros. Mas logo se percebeu que ia passar. Por isso mesmo, Béco se permitiu uma molecagem. Chamou uma ambulância e obrigou o constrangido Galvão a entrar, com suas próprias pernas, na barulhenta ambulância. Menos de uma hora depois, estava de volta, inteiro, na boate aonde a festa se estendeu.
Depois da entrega de prêmios, a esticada foi no Jimmy's, o night club da moda. Novas homenagens - e uma platéia bem mais informal e eclética. Muitos dos pilotos - Prost, lá do outro lado, na reta oposta, Berger, Patrese -, figurões do big business do automobilismo, como o Mansour Ojjeh, sócio majoritário da McLaren, e algumas roadies do circuito, como a Sylvia Piquet, ex-mulher do Nélson.
Tínhamos uma mesa de pista e senti que o Ayrton, que não fazia exatamente o tipo rei da noite, começou a se remexer, inquieto, e a afrouxar o laço da gravata-borboleta à medida que um elenco de mulheres desinibidas veio exibir suas, digamos assim, virtudes, sem o menor constrangimento, bem diante dele. Eu não hei de me esquecer especialmente de uma mulher lindíssima, que tinha corpo e ritmo de bailarina, mas cujo vestido de noite consistia numa pecinha menor do que uma blusa. Ela olhava para o Ayrton e lançava vigorosamente as pernas até a altura da cabeça. Detalhezinho: a moça estava exatamente como a Lílian Ramos no Carnaval carioca de 1994.
- Estou fingindo que não vejo - me cutucou ele, rindo.
A noitada foi ficando para os que tinham bebido demais e para os que tinham se vestido de menos. Não era o nosso caso. Felizes como duas crianças, Béco e eu ainda resolvemos pregar uma última peça. Os amigos diziam que ele era um irremediável pão-duro. Naquela boate onde a dose do scotch custava quase US$ 100 e onde litros e litros de champagne tinham enchido os copos de nossa mesa, o suposto mão fechada Ayrton tomou a iniciativa de ir sorrateiramente para o caixa, acertar a conta, mas combinar com o garçom um susto no Marquinhos Magalhães Pinto, banqueiro, filho de mineiro e outro que não por acaso carregava a mesma reputação. Galvão e Oscar eram nossos cúmplices na cilada.
- Estamos indo. Tchau.
O garçom fingiria que a conta não tinha sido paga. Mais do que isso: multiplicaria por cinco as despesas. Assim foi feito: 40 minutos depois, Marquinhos, que era nosso hóspede no apartamento, apareceu lívido, com uma expressão de puro desespero. Alguns milhares de dólares por uma noite - até um banqueiro é capaz de baquear.
- Acho que vou ter que trabalhar o resto da vida.
Uma gargalhada, a enésima naquele dia de vitórias e alegrias, acompanhou o hexacampeão de Mônaco até a cama, abraçado a mim. Sou dona de um sono adolescente: é entrar nos lençóis, fechar os olhos e apagar. Ele, ao contrário, é do tipo que custa a pegar no sono. Naquela noite, depois de tudo, eu tinha o corpo moído mas a cabeça ligada:
- É um sonho? É verdade?
Já não me importava fazer essa distinção. Queria viver aquilo, em que esfera se passasse. Realidade e ilusão valem a pena, quando uma outra coisa aquece o coração.

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