São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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O culto que vem da França

STUART SCHNEIDERMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um dia, há muitos anos atrás, o papa do movimento lacaniano internacional veio a Nova York.
O dignatário de Paris empertigou-se diante da assembléia e revelou o verdadeiro desejo de todos: fazer parte de um culto francês exótico. O nível era grotesco. A audiência saiu perplexa, mais com pena do que com raiva.
A moral da história é a seguinte: para conduzir uma prática psicanalítica é melhor ficar em casa. Lacan nunca procurou colonizar os países estrangeiros; não era um xamã –viajante que insistia na idéia de que a verdade estava nos livros, cuja venda o enriquecia.
Fossem quais fossem os seus defeitos, Lacan era um original. Mas ele não se fez a partir do nada. Suas atividades clínicas e teóricas se baseavam em décadas de experiência pessoal. Lacan lucrava com o próprio trabalho; nunca explorou relações pessoais para adquirir posições que ele não tivesse conquistado. Não recorria a argumentos de autoridade para provar a legitimidade duvidosa da sua empresa.
Os que não podem pronunciar uma única sentença sem o slogan ``Lacan disse..." são cronicamente avessos à noção lacaniana de que o analista encontra em si próprio a autorização para se tornar analista.
Infelizmente os acólitos de Lacan criaram um culto transformando as suas reflexões em verdades dogmáticas, que só eles, aliás, compreendem. A qualidade de membro, em alguns grupos lacanianos, agora depende da maior ou menor crença em tais dogmas e do desejo de dizer amém aos franceses. Isso acaba produzindo mais fanatismo do que psicanálise.
Embora não tenha sido o único, Lacan deu verdadeiras contribuições para a psicanálise. Mas, se a política atual do prelado lacaniano persistir, as contribuições podem ser tomadas por expressões de um grupelho, tão escravizado pelo seu ídolo quanto por um tirano vivo.
Os lacanianos estão sendo agora desafiados a debater seriamente e a discutir com os que não são crentes. Devem renunciar ao seu jargão e submeter as suas teorias ao julgamento dos outros.
Se os lacanianos de Paris saíssem do universo hermeneuticamente fechado em que circulam como pequenos mestres, perceberiam que se excluíram do debate internacional sobre a psicoterapia do futuro.
Qualquer um pode se tomar por um almirante na sua própria banheira. Não se tornará mais importante enchendo-a com uma frota de navios de brinquedo. Pode se bater quanto quiser, as pessoas do mundo real rapidamente perceberão que se trata de um truque.
Uma tal brincadeira não passa nos Estados Unidos, onde as pessoas não se desejam colonizadas pela França.
As pessoas que têm autoridade e têm responsabilidade no mundo vêem o discurso em termos de política e esta deve ser claramente formulada, sem o que ninguém saberá como implementá-la.
As pessoas que fazem política estão mais concernidas pelas consequências práticas da sua política; devem ser pragmáticas. As que não exercem o poder podem ver o discurso como poesia. Se o que você diz não produz nenhum efeito no real, você pode dizer qualquer coisa, chegar mesmo à mais boba e vergonhosa auto-indulgência.
Vou terminar com uma parábola: se, um dia, você convidar alguém para ir à sua casa, e a pessoa cuspir no prato em que comeu, é bem possível que você não a convide novamente. A pessoa pode tentar explicar a exclusão, contando aos seus seguidores que você se sentiu ameaçado pelo seu brilho. E, para reforçar a crítica, poderá até acrescentar: ``Fui à casa dele, e era exatamente como eu esperava: ele nem sequer sabe fazer uma boa sopa".

Tradução de Betty Milan.

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