São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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O mais brasileiro de todos os franceses

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

Ouvi falar de Lacan pela primeira vez em 1968, numa reunião informal de intelectuais paulistas de esquerda. Para esta reunião, havia sido convidado um psicanalista francês que praticamente só falou de Lacan, quando se esperava que ele tratasse dos eventos de Maio de 68. O fato irritou os marxistas mais ferrenhos mas despertou a curiosidade dos que se interessavam pela psicanálise.
Depois do encontro, formou-se um seminário para ler os ``Escritos - A Carta Roubada". O Brasil institucional, o Brasil dos golpe de 64, nos predispunha a aceitar o que chegasse do exterior e tivesse a marca do anti-autoritarismo. Assim, por exemplo, o pensamento de Max Well Jones, que contestou a organização hospitalar psiquiátrica tradicional e fez na Irlanda a primeira comunidade terapêutica, ou ainda o pensamento do fundador do psicodrama, Moreno.
No fim da década de 60, estabeleceram-se os primeiros contatos de brasileiros com Lacan, tendo em vista a formação. Em 1971, depois de um breve estágio na comunidade terapêutica de Max Well Jones, passei pela França e fui ter com o psicanalista.
Quando fui procurá-lo, não tinha o projeto de me analisar com ele. Apesar das condições políticas do Brasil, das prisões e das torturas, éramos apegados ao país. Mas bastou encontrá-lo, para que a possibilidade de vir à França existisse –o que ocorreu dois anos depois.
Na França, encontrei o colega com quem ia fundar, em 1975, o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, Magno Machado Dias, que também se analisou com Lacan. O Colégio foi fundado num bar do Quartier Latin, com a aprovação do Lacan.
No Brasil, tivemos de reinventar a prática dos analistas, a prática ``lato senso", para não ficarmos marginalizados. O recurso à imprensa, no fim da década de 70, é um exemplo disso. Outro exemplo é o trabalho de pesquisa dos analistas nos cultos umbandísticos ou nas escolas de samba.
Além de traduzir e ensinar Lacan, nós nos valíamos do nosso conhecimento psicanalítico e da nossa escuta para saber qual era a especificidade da cultura brasileira, o que a diferenciava da cultura européia e das outras culturas latino-americanas.
Foi nessa época que nos demos conta de que o ``brincar" era tão importante no Brasil quanto o ``droit" na França, o ``honor" na Espanha ou o ``humour" na Inglaterra. Paradoxalmente, descobrimos o óbvio, mas fomos os primeiros a criticar a elite a que pertencíamos pela desvalorização sistemática desta cultura do ``brincar".
Disso resultou em 1985 um grande congresso no Rio de Janeiro, ``A Psicanálise do Brasil", organizado pelo Colégio Freudiano. O congresso teve a participação de artistas e intelectuais de várias áreas, entre eles Gilberto Freyre, então com mais de 80 anos.
Neste congresso, afirmávamos que a psicanálise não podia estar dissociada da realidade e da cultura brasileira. Procurávamos também difundir a lógica paraconsistente, criada por um lógico brasileiro, Newton da Costa, que não se baseia no princípio da não-contradição e, portanto, serve para pensar o inconsciente, que também não reconhece aquele princípio.
Lacan talvez fosse o mais brasileiro dos franceses, sobretudo pelo modo como elaborava a sua teoria, valendo-se de todos os saberes do seu tempo e os reiventando conforme as necessidades de sua elaboração. O mesmo modo de operar caracteriza a nossa cultura: é a chamada ``antropofagia". Por isso, quando cheguei na França para me analisar, ofereci a Lacan um pente fabricado pelos índios do Brasil.

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