São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994 |
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O mais brasileiro de todos os franceses
BETTY MILAN
Depois do encontro, formou-se um seminário para ler os ``Escritos - A Carta Roubada". O Brasil institucional, o Brasil dos golpe de 64, nos predispunha a aceitar o que chegasse do exterior e tivesse a marca do anti-autoritarismo. Assim, por exemplo, o pensamento de Max Well Jones, que contestou a organização hospitalar psiquiátrica tradicional e fez na Irlanda a primeira comunidade terapêutica, ou ainda o pensamento do fundador do psicodrama, Moreno. No fim da década de 60, estabeleceram-se os primeiros contatos de brasileiros com Lacan, tendo em vista a formação. Em 1971, depois de um breve estágio na comunidade terapêutica de Max Well Jones, passei pela França e fui ter com o psicanalista. Quando fui procurá-lo, não tinha o projeto de me analisar com ele. Apesar das condições políticas do Brasil, das prisões e das torturas, éramos apegados ao país. Mas bastou encontrá-lo, para que a possibilidade de vir à França existisse –o que ocorreu dois anos depois. Na França, encontrei o colega com quem ia fundar, em 1975, o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, Magno Machado Dias, que também se analisou com Lacan. O Colégio foi fundado num bar do Quartier Latin, com a aprovação do Lacan. No Brasil, tivemos de reinventar a prática dos analistas, a prática ``lato senso", para não ficarmos marginalizados. O recurso à imprensa, no fim da década de 70, é um exemplo disso. Outro exemplo é o trabalho de pesquisa dos analistas nos cultos umbandísticos ou nas escolas de samba. Além de traduzir e ensinar Lacan, nós nos valíamos do nosso conhecimento psicanalítico e da nossa escuta para saber qual era a especificidade da cultura brasileira, o que a diferenciava da cultura européia e das outras culturas latino-americanas. Foi nessa época que nos demos conta de que o ``brincar" era tão importante no Brasil quanto o ``droit" na França, o ``honor" na Espanha ou o ``humour" na Inglaterra. Paradoxalmente, descobrimos o óbvio, mas fomos os primeiros a criticar a elite a que pertencíamos pela desvalorização sistemática desta cultura do ``brincar". Disso resultou em 1985 um grande congresso no Rio de Janeiro, ``A Psicanálise do Brasil", organizado pelo Colégio Freudiano. O congresso teve a participação de artistas e intelectuais de várias áreas, entre eles Gilberto Freyre, então com mais de 80 anos. Neste congresso, afirmávamos que a psicanálise não podia estar dissociada da realidade e da cultura brasileira. Procurávamos também difundir a lógica paraconsistente, criada por um lógico brasileiro, Newton da Costa, que não se baseia no princípio da não-contradição e, portanto, serve para pensar o inconsciente, que também não reconhece aquele princípio. Lacan talvez fosse o mais brasileiro dos franceses, sobretudo pelo modo como elaborava a sua teoria, valendo-se de todos os saberes do seu tempo e os reiventando conforme as necessidades de sua elaboração. O mesmo modo de operar caracteriza a nossa cultura: é a chamada ``antropofagia". Por isso, quando cheguei na França para me analisar, ofereci a Lacan um pente fabricado pelos índios do Brasil. Texto Anterior: TRECHOS DA BIOGRAFIA Próximo Texto: O culto que vem da França Índice |
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