São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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Ensaios deitam psicanálise no divã

MARIA ISABEL LIMONGI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quem poderia imaginar que Freud negasse a idéia de que a psicanálise fosse aceita, tornando-se uma das chaves de leitura do homem contemporâneo, com seus conceitos infiltrados no nosso vocabulário comum?
Com efeito, Freud insistiu, até o fim de sua vida, na inevitável resistência do público às suas teses, e nunca viu com bons olhos a difusão da psicanálise, embora evidentemente tenha investido na sua expansão para além de Viena.
Por que esta ambiguidade? É esta a pergunta que se faz Figueira, em ``Freud e a Difusão da Psicanálise", para, em seguida, aplicar Freud contra si mesmo: estamos diante, diz ele, de um típico caso de ``Verneinung" (termo usado para designar a negação que envolve defesa frente ao que se nega).
Segundo Figueira, Freud se defendia da potencialidade da psicanálise consolidar-se como uma visão privilegiada e globalizante, uma intuição-de-mundo (``Weltanschauung"), o que é terminantemente negado por Freud ao insistir nas fronteiras que separam sua ciência da filosofia e da religião.
Contudo, esta potencialidade se revela em algumas características da teoria freudiana: no fato de lidar com temas centrais da existência humana (a morte, o sexo), na sua tendência a integrar categorias distantes (normal e patológico, criança e adulto) e a expandir-se para áreas vizinhas. O receio de Freud era que a psicanálise difundida atualizasse estas potencialidades.
Detectada a ``Verneinung" que foi herdada pelos seguidores de Freud, resta aplicar a psicanálise sobre si mesma, suspender a resistência e defrontar-se com o problema da difusão. Isto traria alguns benefícios. Uma vez aceito o fato de que a psicanálise, afinal, se difundiu, será possível pensar as especificidades de sua inserção nas diversas culturas. Será também possível tematizar as particularidades das situações terapêuticas, segundo as personalidades de analistas e analisandos, e distender a relação que muitos psicanalistas mantêm com o seu ``superego técnico" –o conjunto de preceito técnicos ditados por Freud para manter a cientificidade da teoria.
O que fazer, contudo, com o receio de Freud quanto à ``Weltanschauung" potencial que a psicanálise traz consigo? Quanto a isto, Figueira parece contentar-se com detectar a resistência de Freud a afirmá-la. O silêncio, porém, pode ser sinal de prudência, indicando os limites do procedimento pelo qual a psicanálise pode colocar-se a si mesma no divã. Pois este movimento circular, que preside o tratamento de Figueira, não reitera aquilo que Freud temia, isto é, a potencialidade da psicanálise para se fazer uma visão privilegiada do mundo, capaz de dar conta de tudo, até de si mesma?
Mas isso Figueira fica nos devendo, quando, ao detectar habilmente na questão da difusão ``um problema psicanalítico não resolvido", não distingue com precisão a fronteira que separa os dois modos que podemos entender esta expressão: como um problema que diz respeito à psicanálise e como algo que cabe a ela tratar.

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