São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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A educação do amor

Goethe criou o mais perfeito "romance de formação" europeu

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Os Anos de Aprendizagem de Wilheim Meister" pode ler-se em várias linhas. É o exemplar mais acabado do "Bildungsroman", do romance de educação ou formação. Data da época em que nasce a educação moderna, com Rousseau e Pestalozzi, rompendo a milenar crença numa natureza humana que nem a história nem a pedagogia alteravam, mas apenas, a seus distintos modos, ilustravam. Pois desde os educadores do século 18 se sabe que o homem muda, no tempo, no espaço ou pela educação. É quando Goethe escreve este romance notável, no qual um jovem alemão de classe burguesa se educa, pelo teatro e, superando-o, para a vida.
Não é, porém, em que pesem os elogios dos críticos, e em especial o de Lukács publicado em apêndice, obra fácil de se ler. O debate de temas filosóficos e teatrais atinge maior relevo que os acontecimentos. Mal possui história, se por esta entendermos uma narrativa construída com razoável "suspense": o importante é justamente a "askesis" de Wilhelm, sua ascensão moral.
Por isso, este belo romance causará estranheza ao leitor de nossos dias –mais do que a seu entusiasta Lukács. E isso talvez se deva ao fato de que, entre 1936, ano em que o crítico marxista lhe dedicou sua análise, e nosso tempo, radicalizou-se a crítica aos valores constitutivos do mundo burguês, os quais o comunismo pretendeu retomar (o "humanismo" que o "realismo socialista" realizaria), e que depois da crítica severa e libertária dos anos 60, na França, e dos movimentos de minorias, nos EUA, aparecem a nós como dispositivos mais sutis de dominação.
Assim, o papel atribuído à mulher na família, a idéia de uma felicidade social segundo a natureza estão datados demais dos inícios da dominação burguesa, ou dos iluminismos do século 18, para que passem por nós impunemente. Mesmo a idéia de uma maturidade que se atinge após "anos de aprendizado" –ou seja, de uma ruptura entre a idade do desejo e a do equilíbrio, entre a ilusão juvenil e a família– aparece hoje como um corte construído, de recorte artificial, mais do que como um crescimento natural apenas induzido.
Ou, outro ponto em que a obra se afasta de nós: a forma de narrar. Depois de uma rápida história inicial, que nos apresenta o herói, temos seu lento trajeto pela Alemanha, com muita peripécia mas pouco "suspense" –até que, nas últimas cem páginas, Goethe abusa daquilo que Aristóteles chamava o "reconhecimento". Os fios emaranhados encontram todos seu rumo. O enorme número de acontecimentos que haviam ficado misteriosos alcança explicação. Certamente, nosso leitor terá prazer mais fácil lendo, do mesmo Goethe, as ``Confissões de Werther" ou "As Afinidades Eletivas".
Mas talvez o interessante aqui seja debater o projeto filosófico do livro. Nele se constrói um homem. Wilheim Meister aprende a viver, migrando seu desejo do trabalho sério, mas nada criativo (sua família é de comerciantes), para a atividade, quase mal vista, dos atores.
Seus anos de aprendizado são aqueles em que, a uma paixão amorosa, sucede uma decepção terrível, que o leva aos poucos à maturidade. Junto com esse amadurecimento, vêm seu investimento no teatro, e o empenho em constituir um teatro alemão. Ao longe se lê um problema suplementar, o de uma nacionalidade perturbada, sabemos, pela divisão do mundo germânico em inúmeros Estados.
Impossível ler os "Anos de Aprendizado" sem ter no horizonte o problema que, décadas depois, Stendhal delineará no caso de outra nação sem Estado, ou melhor, igualmente fragmentada em Estados que se tornaram menores que a nação: a italiana. Stendhal diz que para formar uma nação é preciso uma língua nacional, o que na França se deveu à Academia de Letras, legislando sobre a língua. Na Itália, pensa ele, a construção de uma identidade nacional, em termos culturais, passará pela promoção do toscano a nacional.
Assim, aprender a vida, amadurecer, vem junto com aprender a lidar com a emoção. Está em cena o suporte emocional para uma cultura: pois era o teatro a forma mais intensa pela qual esta se deva a público, antes de surgirem os meios de comunicação de reprodução mecânica ou eletrônica, que hoje socializam a massa. E é por aí que a pergunta pelo teatro nacional, ou seja, pela identidade alemã, acompanha a busca de Meister por sua própria vida.
No entanto, é esse jogar-se no jogo que leva a uma reviravolta: após chocar-se o gosto socialmente constituído com uma introspecção exaltada (no livro dentro do livro que são as "Confissões de uma Bela Alma"), Meister começará a encontrar as respostas e as chaves de seu destino, que uma confraria sagaz orientou por ele, à sua revelia.
Assim se supera o teatro (ou o jogo) pela vida, terminando a aprendizagem –o que Lukác lê em termos hegelianos, segundo a "Aufhebung" que significa, no pensamento dialético, a passagem a um nível superior, a superação de termos contraditórios conservando, porém, seu melhor legado. Aqui, curiosamente, o que choca o leitor de hoje –que um grupo de sábios manipule o trajeto de seu educando– não contradiz, ao ver de Lukács, a idéia de que o personagem alcance a liberdade.
Para nós, essa manipulação, seja a dos educadores do século 18 reunidos em sociedade secreta (e mais autoritária que a da "Flauta Mágica", ópera mozartiana de 1791), seja a do partido bolchevique em seus momentos iluministas (pois Lukács era um comunista ilustrado), já não suscita entusiasmo, nem sequer simpatia. Mas talvez esteja nesta distância, que sentimos ante uma das obras constitutivas do mundo burguês em seu empenho pela educação, a razão de ela ainda estar viva: porque não a lemos só para fruir uma boa história; o que nela achamos são questões que vale a pena discutir, mesmo que seja para ter outras respostas.

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