São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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Autor de `Revolução' responde a críticas

LUÍS MIR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Será que o sr. Jacob Gorender está realmente disposto a fazer uma crítica séria e objetiva dos insucessos da esquerda fora dos esquemas ideológicos de uma certa historiografia oficial? Se acreditarmos nos fatos a que ele se refere no seu artigo no Mais! (de 25/9/94), somos levados a dizer que não.
Primeiro, do ponto de vista factual, pela completa inexatidão das suas versões. Para não evocar de maneira deselegante uma série de pessoas que, de uma forma ou de outra, deram sua contribuição para o ideal revolucionário de justiça e fraternidade que alimentavam, podemos nos concentrar em dois fatos reveladores da desinformação e deslealdade intelectual desse artigo.
1. A passagem de Che por São Paulo: Passou um dia e meio em São Paulo. Encontrou-se com Marighella e Câmara Ferreira. O crítico cita o livro de Regis Debray – ``A Guerrilha do Che" (Edições Populares, 1980)– para desmentir essa informação. O mesmíssimo livro, 10ª edição, de 1987, na pág. 135 traz a cronologia boliviana do comandante Che Guevara segundo Debray: ``4 de novembro de 66 - Chegada, via Madri-São Paulo, do comandante Guevara, com o nome de Adolfo Mena González, de nacionalidade uruguaia `como enviado especial da Organização dos Estados Americanos' ".
Começos de dezembro de 1966 - Viagem de Mário Monge a Cuba.
31 de dezembro de 1966 - Entrevista de Che (Ramón) com Monge no acampamento de Ñancahuasu.
Che Guevara fez o que nesses dois meses entre a chegada a São Paulo e sua entrada na Bolívia? Entre as muitas atividades, negociar com os dissidentes do PCB em São Paulo. Entrevistei militantes do chamado Agrupamento Comunista de São Paulo, embrião do que viria a ser a ALN (Ação Libertadora Nacional) que discutiram com Marighella os detalhes das propostas feitas por Che em São Paulo. O próprio Marighella propagava as conversações em São Paulo. Na pág. 138 do livro utilizado para a minha pesquisa, Debray escreve o seguinte:
``Entretanto, o Che, informado na última hora dos preparativos de Marighella, que não eram ainda mais que intenções, teve a precaução de incluir a situação existente no seio do comitê regional do PCB de São Paulo na série de informes que pediu para lhe reportar mais ainda (sic), ao meu regresso à guerrilha, após um périplo pelo estrangeiro..."
2. Prestes em Moscou, janeiro de 64 - O crítico se atribui uma importância que efetivamente não tem: ``Da entrevista que lhe concedi, Mir extraiu a informação a respeito da viagem de Luís (sic) Carlos Prestes a Moscou, em janeiro de 64. Na ocasião, o diário `Pravda' publicou, no alto da primeira página, notícia sobre o jantar no qual o secretário-geral do PCB foi recebido pelos mais altos dirigentes soviéticos. Foto encimando a notícia mostrava Prestes ao lado de Kruschov, Kossiguin e Mikoyan. Comentei que a recepção indicava o prestígio do líder comunista brasileiro junto à cúpula soviética, prestígio liquidado pelo fracasso do PCB diante do golpe militar de 31 de março. Não dispondo de exemplar do `Pravda' e não querendo confiar na memória, dispensei este dado no livro que escrevi sobre a esquerda. Sem lhe acrescentar nada, Mir fez da informação, que lhe transmiti, o ponto de apoio para a narrativa totalmente imaginária dos passos de Prestes na capital russa, enxertada como de costume por diálogos absurdos".
O crítico, além do pouco, ou melhor, nenhum rigor histórico no seu livro sobre a esquerda para com essa passagem de Prestes por Moscou e o que lá acordou, faz afirmações venais. Para a reconstituição histórica rigorosa, cito a foto do ``Pravda" no meu livro. Mas a passagem de Prestes por Moscou começou na leitura das cadernetas (19 cadernos, mais de 1.500 páginas) onde o líder comunista fazia o relato de tudo, das despesas do partido com aluguéis até suas conversas com Suslov e Kruschov.
Nelas, estão expostos com minúcias os diálogos e acordos políticos acertados em 18 de novembro de 61 entre Prestes, Kruschov e Suslov sobre uma nova tentativa insurrecional dos comunistas no Brasil, pacífica. Quando Prestes vai a Moscou em 64, esse plano político está maduro, segundo ele e os líderes soviéticos. Essa visita é reconstituída por Maria Prestes no seu livro –``Meu Companheiro - 40 Anos ao Lado de Luiz Carlos Prestes"– uma pequena obra-prima sobre a vida e militância política.
A autora, por sua vez, além de presenciar esses fatos, pois era a acompanhante principal de Prestes na ocasião, está lastreada em relatórios soviéticos confidenciais, aos quais somente um secretário-geral tinha acesso, no caso Prestes. Entrevistei Maria Prestes no Rio de Janeiro sobre seu livro e membros do Comitê Central do PCB. O crítico pode encontrar preciosidades nesse livro e no meu. Algumas pérolas no livro de Maria Prestes:
``Em 1964 pouca gente sabia que era uma fachada essa nossa viagem oficial à URSS. Na verdade, o objetivo do Velho era outro... O Velho, no avião particular do próprio presidente Kruschov, faria uma viagem da qual ninguém no Brasil podia tomar conhecimento." (pág. 18)
``O teatro foi muito bem montado. Eu parti para a cidade de Leningrado, e o Velho finalmente tomou o avião, em que ele era o único passageiro, e foi para Cuba. Enquanto ele mantinha seu tão esperado contato secreto com Fidel Castro..." (pág. 20)
``No dia 7 de fevereiro Nikita Kruschov recebeu o Velho no seu gabinete de trabalho no Kremlin para uma longa conversa e dele ouviu com atenção as explanações sobre a situação no Brasil." (pág. 21)
``O dirigente soviético ficou admirado quando soube do avanço dos comunistas no seio das Forças Armadas, principalmente no recrutamento de soldados e oficiais da ativa. Prestes deu o nome de dois generais do Alto Comando que já faziam parte da organização. Após esse encontro oficial, Kruschov convidou o Velho para um almoço. De forma muito franca, a conversa continuou com a presença à mesa de Brejnev, Andropov, Mikoyan, Suslov, Ponomariov e Ustinov. Esses eram os homens mais próximos do então dirigente da URSS." (pág. 22)
``(Depois de uma referência a queda de Kruschov e as mudanças que estavam ocorrendo na URSS) Tinha que tomar muito cuidado, até porque sabia que infelizmente o serviço secreto norte-americano tinha tomado conhecimento do conteúdo dos encontros reservados que ele teve no início de 64 com a cúpula soviética." (pág. 126)
No ``Jornal do Brasil" (de 1/10/94), no caderno ``Idéias", Leandro Konder faz uma afirmação categórica:
``Diante de tudo o que tem acontecido nos últimos anos, a esquerda não poderia mais adiar uma reflexão que a vida está lhe impondo: um ajuste de contas com sua história recente. A derrubada do Muro de Berlim, o fim da União Soviética, a falência do modelo leninista e a constatação de que todas as experiências socialistas apresentaram problemas mais graves do que supunham seus teóricos."
Mais ainda que essa revisão política e ideológica, o historiador de esquerda necessita abandonar a camisa de força de uma história ideológica para dar a importância devida a subjetividade das pessoas, que foram os atores desses acontecimentos. Com tudo que implica de risco, emoção, coragem, aventura. Refletida como sempre na realidade humana em ambições, ciúmes, disputas, que sempre caracterizou a luta dentro da esquerda.
`A Revolução Impossível', da maneira como foi feita –seis anos de pesquisa, mais de 300 entrevistas, arquivos pesquisados a exaustão (nacionais, internacionais, familiares, universitários, partidários) uma bibliografia de mais de 500 livros sobre o assunto anotados e lidos– é uma homenagem a essas pessoas, independentemente do papel histórico no qual a história oficial os queira esconder.

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