São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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Arqueologia do espetáculo

MAURICIO PARONI DE CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O caderno Mais! de 18 de setembro, dedicado à tentativa de ``reconstrução" do Globe Theater, traz uma breve menção ao resgate da forma ``original" de seus espetáculos que merece ser aprofundada.
Tentativas do gênero já ocorreram várias vezes. Mas o que chama a atenção é que esta tende a apresentar-se como científica ou definitiva. Tudo embasado numa nova historiografia teatral que privilegia o estudo do espetáculo e redimensiona a importância do estudo da literatura dramática.
Essa moderna historiografia é o melhor produto intelectual do teatro nos últimos anos, mas não devemos confundir as coisas. Na prática, a arqueologia do espetáculo é impossível. O instrumento de comunicação maior do teatro é a necessária criação de uma relação de tempo e espaço entre atores e público. O diretor americano Jo Chaikin, em sua dissidência com o Living Theather, fez uma excelente formulação do problema. Afirma que o ato teatral é o ápice de uma intersecção de duas performances. Uma, dos atores, que estudam, ensaiam, representam e saem do espaço onde teve lugar a representação. Outra, do espectador, que escolhe data, companheiros e programa, assiste (e lê) o espetáculo, sai para jantar e talvez comente ou lembre-se dele. Trava-se também uma batalha onde a maioria dos diretores modernos procura, de todas as maneiras, condicionar a experiência de assistir o espetáculo à sua leitura. Como Don Quixote, ele perde sempre, mas justifica a importância de sua existência.
O fato é que o cotidiano do espectador (o que está fora do espetáculo em si) influencia muito mais a leitura que os instrumentos de que o diretor dispõe. E tudo isso numa época em que existe uma enorme vontade de esquecer tudo para reconstruir ao mesmo tempo uma memória inspirada numa autenticidade ``científica".
Trata-se do que chamo de cultura da verossimilhança teatral. Ao grande público não está mais interessando o valor artístico enquanto progresso em relação a uma forma passada e em direção a alguma ética ou utopia.
Enquanto os processos de criação teatral partem para progressões diferentes e incongruentes entre si, este tipo de público perde gradativamente as referências que lhe possibilitam a compreensão. Como isso vem acompanhado de um cotidiano governado pela cultura da informática, que é órfã de qualquer tipo de mistério humano, os espectadores agarram-se a tudo o que pode ser ``comprovado" por essa mesma cultura. É uma espécie de fundamentalismo religioso do teatro atual, onde as pessoas tentam comprovar o que é possível dentro do seu esquema mental. Portanto, verossímil.
Percebo que aos poucos todos nós estamos nos ``contaminando" com a idéia de uma busca de credibilidade da atuação própria das linguagens espetaculares reproduzíveis como o cinema e a televisão, em suas formas mais massificadas. Confunde-se muito facilmente a representação física e presente (teatro) com a individualização esquizofrênica da expressão teatral (verossimilhança).
Para um grande público atual cada vez mais massificado, é mais atraente viver a experiência de ``voltar" aos tempos de uma representação elizabetana do que entender uma determinada visão que nasce de um texto de Shakespeare. Paradoxalmente, o texto é o elemento mais importante de comprovação verdadeiramente científica dentre todos os elementos de um espetáculo teatral.
A operação do Globe é um endosso colossal dessa tendência. Procura interferir na área privada da performance do público. Quer ``educar" até estabelecer um ponto de referência único e re-inicial da compreensão de Shakespeare. Na Inglaterra, já se vêem adolescentes vestindo T-shirts com a inscrição ``Will Power". Parecem gritar: ``Fogueira pras babaquices desses atores, diretores, críticos, Shakespeare é um só, e o único lugar dele é o Globe!" Shakespeare, deus único e confinado sonho esquizóide do monoteísmo ocidental.
Creio porém que essa fantasmagoria de ficção-científica será impossível. As palavras de Shakespeare ainda são as mesmas, o sol das duas da tarde ainda é o mesmo, a composição da argamassa pode ser a mesma. Mas a representação não é reproduzível pelo simples fato de que é feita por seres humanos. Muda de um dia para o outro, queira-se ou não. Qualquer ator sabe disso, até Silvester Stallone.
Além do mais, a própria evolução da representação elizabetana foi interrompida pela revolução puritana que fechou os teatros. Não existe hereditariedade de um gênero de representação sem que este seja feito dia após dia. Depois da restauração da Monarquia, iniciou-se um outro gênero, a Comédia da Restauração. Mesmo que algumas daquelas comédias evocassem cenas elizabetanas, o espaço e o modo com que eram encenadas já eram completamente diferentes.
Outro ponto fundamental é a óbvia diferença entre o público de hoje e o da época. Temos dois ótimos exemplos históricos, um no Oriente e outro no Ocidente. O teatro Nô, cuidadosamente transmitido por gerações de atores (cultuados como ``tesouros nacionais vivos"), e assistidos por um público cuja cultura da cópia faz parte do próprio sistema educativo, provavelmente possui a forma atual muito próxima à forma de origem. É valioso, mas absolutamente distante do japonês de hoje, que vai ao espetáculo como se vai respeitosamente ao almoço de domingo com a sogra.
No Renascimento italiano, a ``Camerata dei bardi" tentou ressuscitar a representação da tragédia grega. Sem computador e fundamentalismos, a coisa tomou vida e transformou-se no melodrama.
Provavelmente o Globe vai virar um centro de teatro turístico. Existem vários na Europa. Eu mesmo passei por uma experiência semelhante, num nível mais modesto. Confesso que, ainda estudante com problemas de sobrevivência, assinei sob pseudônimo uma das anuais cenas do balcão de ``Romeu e Julieta", representada no balcão (falso) da casa (falsa) da própria Julieta, em Verona, Itália.
O público descia dos ônibus que os traziam da representação de ``Aida" nas ruínas de uma arena romana (verdadeira), com direito a elefantes (verdadeiros) e um ``autêntico" obelisco egípcio. Quase todos americanos e japoneses. Sacaram suas máquinas fotográficas, queriam levar Shakespeare ``autêntico" para casa. Eu até que gostei do trabalho dos atores, mas me senti um nazista inspirador da clonação de tantos Romeus e Julietas quantos eram os flashes.
Espero que a experiência tome curso diferente e ganhe vida. Mas qualquer que seja o resultado, ficará finalmente provado que o teatro não se reduz a comparações com microchips. Estes são instrumentos utilíssimos para a iluminação, cenotécnica, bilheteria, mas não substituem a criação e o ator. Gostaria de reconhecer neste projeto a presença do mistério do teatro. Ou, na falta deste, pelo menos suor humano em sua busca.

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