São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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``Não passei 15 anos fazendo 2.500 páginas de fofoca"

CATERINA KOLTAI

``Não passei 15 anos da minha vida escrevendo 2.500 páginas de fofoca. Sou historiadora e os que me acusam de escrever fofocas que tentem prová-lo", afirma Elisabeth Roudinesco na entrevista a seguir, a respeito de sua biografia de Jacques Lacan.
A entrevista foi concedida à Folha, por telefone, de Paris, onde mora Roudinesco. Ela é também autora de ``História da Psicanálise na França" (os dois volumes foram publicados no Brasil por Jorge Zahar Editor) e acaba de lançar na França ``Généalogies" (ed. Fayard).
Folha - Ao terminar o livro, o personagem de Lacan era o mesmo que você tinha em mente quando começou a escrever a biografia, já que você vem trabalhando no assunto desde a ``História da Psicanálise na França"?
Elisabeth Roudinesco - Na ``História da Psicanálise" enfoquei a batalha da implantação da psicanálise e Lacan aparecia aí de forma descentrada. Neste livro, centrei o relato em Lacan e seu sistema de pensamento. Há, portanto, uma certa des-historicização. A forma de relato é outra, e surge um Lacan menos hegeliano e mais nietzscheano, menos progressista e mais filósofo, pois é preciso lembrar que foi ele que reintroduziu a filosofia alemã no pensamento freudiano.
Mostro aqui um Lacan que vem na continuidade dos outros grandes interprétes do freudismo, como Melanie Klein e Winnicot, ainda que tenha provocado um escândalo maior por ter sido expulso da ``legitimidade" freudiana. Os outros intérpretes também haviam inovado, e transgredido, mas Lacan foi o único a transgredir o tempo da sessão, o que provocou escândalo do ponto de vista clínico.
Folha - Seu livro tem sido criticado por anti-lacanianos e lacanianos ortodoxos. Como você explica esse encontro de opositores com um mesmo objetivo?
Roudinesco - Os primeiros diabolizaram Lacan, fazendo dele um monstro, enquanto que os outros sacralizaram, fazendo dele um santo. Uns e outros baseiam-se em lendas, o que os impede de teorizar. Lacan é o maior pensador da psicanálise na França e um dos grandes intérpretes do freudismo no século, mas é preciso ir além da idolatria, caso contrário acaba-se condenado a repetir a doutrina de modo mimético.
Entre os lacanianos ortodoxos chegou-se ao absurdo de proibir a leitura do livro. Tal comportamento é no mínimo perigoso para o lacanismo e, aliás, não é o que Lacan nos legou. Ele sempre foi um mestre da leitura dos textos, lia e comentava seus adversários. Tudo isso é devido ao lugar fantasmático que Lacan ainda ocupa e mostra como é difícil a passagem para a história, ainda que um número cada vez maior de analistas esteja maduro para escapar dos dois extremos.
Folha - Seu livro foi acusado de ser fofoqueiro e pouco histórico, o que você acha disso?
Roudinesco - Que estou cansada de responder a bobagens desse gênero. Não passei 15 anos da minha vida escrevendo 2.500 páginas de fofoca. Sou historiadora e os que me acusam de escrever fofocas que tentem provar o que dizem. Levo a anedota em conta porque ela é sempre significativa.
Também me recuso a continuar alimentando a discussão quanto ao reflexo do homem na obra. É uma questão completamente superada pela historiografia contemporânea. Não se pode dizer que a obra de um homem reflita sua vida ou vice-versa. Lacan teve uma vida difícil, apaixonante e complexa e todo homem que se proponha elaborar um sistema de pensamento tem que estar em ruptura com seu tempo. Os conformistas são bons avozinhos mas não elaboram sistemas de pensamento. Não se faz teoria com bons sentimentos.
Folha - Em seu livro, a psicanálise é contada como um romance histórico –a lenda, com seus heróis, e o recalcado: jornais íntimos, arquivos perdidos. Por que essa escolha?
Roudinesco - Trabalhei com aquilo que se chama de ausência de arquivo. Os herdeiros de Freud tinham constituído arquivos escritos que os historiadores puderam consultar. Nada disso aconteceu com Lacan: manuscritos e correspondência não foram classificados e postos à disposição do público pela família.
Para se ter acesso aos documentos é preciso consultá-los nos arquivos de outras testemunhas. Foi o que fiz, consultando os arquivos de Althusser, de Françoise Dolto, etc. Lacan teve duas vidas e duas famílias e os herdeiros legais só possuem a metade da história, ou seja os arquivos de Lacan a partir dos anos 50.
Essa é uma das razões pela qual não se trata de uma biografia no sentido clássico e sim de uma história com buracos, onde faltam coisas. Muito da infância de Lacan está definitivamente perdida, uma vez que seu irmão Marc François, única testemunha, está morto.
Folha - Você acaba de voltar da Argentina. Quais as suas previsões quanto ao futuro do lacanismo na América Latina?
Roudinesco - Em Buenos Aires vivi uma experiência interessantíssima. Participei de um debate de alto nível com o presidente da AIP (Associação Internacional de Psicanálise) e com um membro da escola de Jacques-Allain Miller, o genro de Lacan. Isto teria sido impossível na França, onde os psicanalistas da AIP não participam de debates públicos com seus adversários lacanianos. Como historiadora acho a situação argentina apaixonante. Quanto ao Brasil, prefiro não me manifestar, pois a última vez que estive aí foi e em 87 e suponho que a situação já não seja a mesma.
Folha - O que você quer dizer quando afirma que a psicanálise na visão de Lacan teria sido uma tentativa de revalorização da função paterna?
Roudinesco - De um lado, a psicanálise nasceu das interrogações suscitadas pelo declínio do patriarcado e o crescimento do feminismo, e, de outro, foi uma tentativa de responder a isso. A teoria do Édipo em Freud seria uma tentativa de revalorizar a ``imago" paterna. Lacan percebe isso claramente desde 1938 e é através do simbólico que tentará revalorizar o pai. É aí que podemos dizer que há um pensamento político em Lacan. Revalorização não através de uma figura autoritária e fascista e sim pela linguagem –o pai reaparecendo investido de uma potência de linguagem.

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