São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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É uma vergonha

É paradoxal e cruel, mas, no Brasil de hoje, pode ser inviável ver mais pessoas consumindo e vivendo melhor. Soma-se a perversidade de uma das piores distribuição de renda do planeta à falta de estímulos à produção. Isso faz dos sonhos e esperanças do brasileiro pobre e de classe média uma perigosa ameaça à estabilidade econômica.
A estiagem e a especulação sem dúvida contribuíram para a elevação dos preços da carne e do feijão, por exemplo. Mas o problema não é somente episódico ou de entressafra. Ressalta o fato em nada misterioso de que o país até hoje não se preparou para atender satisfatoriamente às necessidades de alimentação de sua população.
Não se trata apenas de falta de comida. O crescimento evidencia que não só na área alimentar, mas em quase todos os itens essenciais ao bem-estar do cidadão, logo se atingem pontos de estrangulamento. É assim com a capacidade produtiva, a estrutura de armazenamento ou a malha de transportes.
Não há saídas simples ou puramente técnicas para essa perversa exclusão que se perpetua. Mas a avassaladora necessidade de superá-la impõe que se criem as condições para que uma economia mais vigorosa seja construída. É preciso criar um ambiente favorável aos investimentos, com estabilidade nas regras, ganhando a confiança do país e dos cidadãos.
Ainda que a dimensão das carências brasileiras não permita supor que para enfrentá-las baste um ambiente favorável aos investimentos, é inegável a extrema relevância desse fator. Mesmo que nas áreas de infra-estrutura e educação a colaboração do Estado se faça necessária, é imprescindível criar condições em que as expectativas do setor privado sejam favoráveis. O otimismo é um motor da economia.
O governo, entretanto, faz o inverso. Está solapando a credibilidade obtida com o Plano Real e a vitória de seu candidato. Não encaminha com a necessária urgência as reformas do Estado e, com as súbitas medidas que cercearam o crédito à produção, tirou a transparência da política econômica, minando a confiança na equipe do Ministério da Fazenda. Pouca coisa poderia ser mais prejudicial.
O Brasil precisa de um crescimento econômico em que comprar geladeiras não seja uma ameaça nacional. A importância de estimular a oferta de produtos salta aos olhos face às condições determinadas pelos atuais níveis de consumo, especialmente nas camadas de baixo e baixíssimo poder aquisitivo.
Os 20% mais pobres da população recebem o equivalente a 2% da renda nacional, os 10% mais ricos se apossam de 51%, segundo o Banco Mundial. Por esses mesmos parâmetros, a Índia está incomparavelmente melhor: o quinto inferior da pirâmide social ganha o correspondente a 9% da renda, os 10% mais ricos ficam com 27%.
A crueza desses números demonstra por si só por que o combate à inflação não pode atacar indiscriminadamente o sistema produtivo. A busca da estabilização, que é sem dúvida a atual prioridade, não pode ignorar a necessidade de fortalecer a produção; não pode prescindir da criação das bases sobre as quais o país possa se desenvolver.
Colocar um freio ao consumo quando a oferta nacional e as importações não são capazes de atendê-lo evita a inflação e está correto. Mas dificultar a produção é absolutamente irracional.
Os desafios do Brasil vão além da garantia do valor de sua moeda. É imprescindível que se amplie a capacidade produtiva a fim de que a população brasileira possa superar em parte suas mazelas e elevar sua qualidade de vida. É vergonhoso que a demanda por feijão, carne, geladeiras, roupas ou habitações se torne tão rapidamente assustadora.

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