São Paulo, terça-feira, 25 de outubro de 1994
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Governo contra o medo

MARCELLO ALENCAR

Na metade do século 16, o conquistador português pensou que a Baía de Guanabara fosse o estuário de um rio. Era janeiro e a imprecisão transformou-se em substantivo próprio: Rio de Janeiro, de onde, também, o radical latino veio impor o gentílico ``fluminense", ao passo que os nativos, impressionados com as edificações dos caraíbas –as casas de branco– propuseram ``carioca".
Hoje, cariocas e fluminenses se preparam para eleger um governador, e a referência histórica da fundação do Rio de Janeiro é absolutamente necessária. Quem se candidata a governar um povo tem a obrigação de conhecer sua história e dela extrair as lições maiores que irão inspirar um programa coerente.
No Rio de Janeiro, a cidade, há o mártir Sebastião, santo flechado, reverenciado por católicos e reapropriado pelas religiões afro-brasileiras na entidade Oxóssi. Em Niterói, o índio Araribóia, herói das primeiras lutas. A idéia do Estado do Rio de Janeiro, assim, sempre deverá corresponder à síntese do Brasil. Surgiu com todos os arquétipos dessa grande síntese. Quem não compreender isso, não poderá governá-lo.
A origem comum desse Estado, por isso, pode e deve ser resgatada, se governo e sociedade decidirem realizar na prática o que o processo autoritário e mal-acabado da fusão entre os antigos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro não conseguiu concretizar.
De fato, é impressionante como a reunião de duas importantíssimas unidades da Federação, ligadas por fortíssimos laços históricos, pode chafurdar na decadência econômica e social, resultando, 20 anos depois, em estagnação, favelização, colapso dos serviços públicos e violência, muita violência.
Se for analisado o período entre 1975 e 94, constatar-se-á uma impressionante curva descendente de todos os indicadores de prosperidade no Estado. A miséria, gerada pela urbanização impiedosa, a ser debitada na conta dos equívocos do regime militar, passou a ser cinicamente cultivada por um populismo pernicioso, que multiplica a pobreza para obter mais eleitores.
Idêntico comportamento levou ao incremento absurdo da criminalidade, principalmente na cidade do Rio e na Baixada Fluminense. O governo do Estado passou a identificar –numa visão extremamente preconceituosa– o pobre e o criminoso, e, dizendo-se defensor do primeiro, passou a tolerar o segundo. É a fórmula da barbárie, o fim da civilização.
Medo. Esta é a contribuição perversa que uma série de governantes irresponsáveis deixou para a população do Estado do Rio de Janeiro. Medo de sair às ruas, de ser atingido dentro de casa, de ser sequestrado, de ser atacado no trabalho ou no lazer. Medo do bandido e da polícia, e muitos outros medos: de ir ao hospital, de transitar por estradas inseguras, de não conseguir emprego, de não educar seus filhos. Medo de sentir mais medo, de perder a esperança.
Hoje, nenhum serviço público estadual funciona. O Estado parece ter sido engendrado para impedir o acesso à cidadania plena. Como numa comédia sinistra, de humor negro, dedicam-se os atuais governantes a fazer justamente o contrário do que o povo espera.
A ineficiência passou a ser a regra e o questionamento atual acerca do tamanho do aparato estatal não pode sequer ser cogitado no Rio de Janeiro atual. Aqui, deve-se discutir, antes, a própria existência do Estado.
Estão destruídos os sistemas de educação e de saúde. As Polícias Civil e Militar foram abastardadas. A máquina arrecadadora vegeta na incompetência absoluta, gerando o paraíso dos sonegadores. Até mesmo instituições tradicionais, como a Defensoria Pública e a Procuradoria Geral do Estado, foram inteiramente desmerecidas. A política de ``terra arrasada" transformou o lugar mais bonito do mundo num celeiro de notícias fúnebres e sanguinolentas.
O lugar mais bonito do mundo. Um Estado que não se detém na cidade do Rio de Janeiro, que tem o sol de Angra e de Búzios e o frio temperado de Mauá, Petrópolis, Teresópolis e Friburgo. Um Estado de nítida vocação agrícola e industrial. Um centro financeiro, de comunicações e de exportações de potencial ilimitado. Um pólo de ciência e tecnologia assentado em, pelo menos, seis grandes universidades.
Um lugar que é, desde sua fundação, o perfeito resumo do Brasil. Um farol, segundo a bela imagem de Fernando Henrique Cardoso, que já é o nosso presidente. Falta, ao lado dele, um governador, somente isso.
Porque, apesar de tudo, o Estado do Rio resistiu. A sociedade civil, os trabalhadores e a iniciativa privada fizeram o milagre de mantê-lo vivo, superando todos os esforços em contrário do governo que se encerra.
Essa luta merece os maiores aplausos e tem no PSDB, e seus aliados, um adepto da primeira hora. Por isso é que, neste momento, o Estado precisa, também, de um governador de resistência, que se posicione contra todas as carências econômicas e sociais, prenda os bandidos, organize os serviços públicos e cumpra a lei.
Um governador comprometido com a esperança da sociedade, e que conheça e compreenda seu Estado. Um governador contra o medo.

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