São Paulo, sexta-feira, 28 de outubro de 1994
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Governador e santo milagreiro

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

O candidato ao governo do Estado de São Paulo, Francisco Rossi, é um renomado milagreiro e curandeiro, parapsicólogo e telepata, um iluminado enfim. Seus oponentes querem se valer dessa inegável qualidade para desqualificá-lo. Contestam inclusive seu poder para executar milagres. Não obstante, a história está repleta de exemplos de grandes líderes políticos que se notabilizaram por seus milagres.
``Então Moisés estendeu sua mão sobre o mar e o Senhor afastou o mar durante toda a noite com um forte vento do leste e converteu o leito do mar em terra seca. As águas foram separadas e os israelitas atravessaram pelo mar em terra seca, enquanto as águas fizeram uma parede para eles à direita e à esquerda."
Durante os 40 anos que se seguiram à travessia do Mar Vermelho, Moisés teve de fazer outros milagres. Todavia, não apenas no ``Êxodo", mas em todos os demais livros do Antigo Testamento, teve-se sempre o cuidado de atribuir os milagres a Deus e nunca ao herói do episódio.
Moisés solicita a Deus e Ele concede a graça. Tudo de acordo com a ``Suma Teológica" de Tomás de Aquino, que postula com clareza: ``Somente Deus pode produzir milagres".
Seu argumento é cristalino. O milagre é uma transgressão das leis naturais. E o autor de todas as coisas e das leis naturais é Deus. Somente Deus pode alterar, transgredir uma lei sua. Caso contrário não seria onipotente, não seria Deus. ``A eclipse pode parecer um milagre para um camponês ignorante, mas não para um astrônomo", exemplifica Tomás de Aquino.
Todavia, no Novo Testamento é Jesus que realiza seus milagres. Deus não é sequer invocado. É a saliva de Cristo que misturada ao pó da terra constitui o unguento que cura a cegueira do mendigo.
Bem disse Bernard Shaw em seu ``Aventuras de Uma Negrinha que Procurava Deus", onde confronta as inconsistências entre o Novo e o Velho Testamento, que há muitos deuses diferentes na Bíblia.
O Deus de Moisés o esmagaria se este profeta mostrasse a independência de Jesus. Pois bem, o nosso milagreiro Rossi se aproxima mais de Jesus do que de Moisés, apesar da semelhança de seu milagre mais famoso, a interrupção do tráfego de São Paulo, com o mesmo gesto com que Moisés sinalizou para que as águas do Mar Vermelho se separassem.
Mas para Jesus os teólogos cristãos têm uma saída perspicaz. Quando convém, Jesus também é Deus. Quando sofre na cruz, Ele se acomoda às limitações do homem mortal, senão seu sofrimento seria uma farsa. Quando opera um milagre, Jesus é Deus.
Cientistas estão acostumados com essa aparente inconsistência. Afinal, no âmago da física, está a dualidade onda-partícula. Então por que não aceitar o mistério da Santíssima Trindade?
Mas Rossi vai levantar um problema teológico grave no seio do cristianismo. É com o poder da própria mente que ele realiza curas e outros milagres. Ele se concentra, ``mentaliza", e o tráfego pára. Assim ou é um novo Filho de Deus, ou Deus ele mesmo, ou terão os teólogos que rever os sólidos conceitos contidos na ``Suma Teológica".
Por outro lado, seria conveniente para o Estado de São Paulo um governador com os poderes mentais do sr. Francisco Rossi. Somente um milagre salvará o Estado do desastre econômico a que as administrações Quércia e Fleury o condenaram.
O setor de saúde, por exemplo, teria seus custos reduzidos a quase zero. O governador faria uns passes e fechávamos o Hospital das Clínicas, o dos Servidores, o Incor e tantos outros. Um pouco de ``mentalização" e o tráfego teria todos seus problemas resolvidos. Só a economia com semáforos já valeria a pena. Os dotes telepáticos do futuro governador, se devidamente difundidos, tornariam supérfluas a telefonia celular e outras tecnologias de comunicações. Poderíamos até fechar a Telesp.
O Palácio dos Bandeirantes, que já é talvez o edifício mais cafona do Hemisfério Sul, se tornaria um centro de parapsicologia, telepatia e estrebuchamento universal. Além do governo de Papa Doc no Haiti, não há outro exemplo na história moderna de associação entre feitiçaria e Estado. Somos, nós paulistas, inovadores ou não?
Aliás, já experimentamos de tudo. Um doidivanas, um mascate, um trambiqueiro, um apoucado. E agora um mandigueiro? Pois bem, que assim seja. Mas antes uma análise deve ser feita. Há três hipóteses possíveis.
Na primeira, Rossi, não faz milagres e sabe que não faz, mas finge. Neste caso seria um falsário comum e não mereceria nosso voto. Na segunda hipótese, ele não faria milagres, mas acreditaria ser capaz de fazer. Neste caso é um mentecapto, e não estaríamos mudando muito votando nele. E a terceira seria de que ele, de fato, é capaz de realizar milagres. Neste caso seria uma espécie de Jesus Cristo.
Vocês acham que Jesus Cristo se candidataria a governador de São Paulo? Qual seria o propósito divino? Só para sacanear o Quércia? Ou o Fleury? É preciso acreditar que Deus é sério, não enviaria um santo milagreiro para fazer o papel de um político. Mas se você acredita que Deus é um cínico, que está se divertindo com esta farsa toda, vote nele. Ou então, para aliviar sua consciência, vote em branco, que é meio voto para o milagreiro Rossi.

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