São Paulo, domingo, 30 de outubro de 1994
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Memórias de um construtor

LUÍS NASSIF
COLUNISTA DA FOLHA

Encontrei Roberto Campos meses atrás em seu apartamento no Rio. Ele convalescia de uma crise cardíaca grave e o diagnóstico (sussurrado pelos amigos) era desanimador. Posteriormente, fez exames nos Estados Unidos que comprovaram que sua saúde continuava igual à sua verve: inabalável.
Mas, naquele momento, parecia o construtor do Brasil ditando seus últimos recados ao país. Pouco tempo antes, uma pesquisa do Mapa das Elites, o indicara como o mais influente dos brasileiros vivos, o homem que mais influenciava a cabeça da elite brasileira.
Tempos antes, por ocasião do impeachment de Collor, surpreendi-me ao ver sua emoção por ter sido aplaudido em plenário. Supunha que fizesse parte intrínseca da personalidade de Campos a busca da vaia. Não fazia.
Ao final da entrevista, comoveu-me ver o grande brasileiro –um dos mais relevantes da segunda metade do século, ao lado de Lucas Lopes e Gouveia de Bulhões– olhar para trás e contemplar sua obra. Mas sem jamais tirar os olhos do futuro.
E eu, que na adolescência ajudei a xingá-lo de entreguista e de Bob Fields, recolhi-me à minha insignificância, para beber no conhecimento e na sabedoria de um dos construtores do Brasil.

Folha - Entrando direto nas suas memórias, ``A Lanterna na Popa", que acabam de ser lançadas: fala-se muito hoje em dia, com nostalgia, do clima desenvolvimentista que tomou conta do país nos anos 50. Como o sr. definiria este período?
Roberto Campos - Esse, digamos, abandono do fatalismo em relação à pobreza, foi um movimento internacional de pós-guerra, que você nota até na evolução de semântica. Os países eram pobres, depois ficaram atrasados, depois em desenvolvimento e agora se fala em países emergentes.
No Brasil, a primeira sistematização desse espírito foi a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, da qual eu participei e participou o Lucas Lopes, que morreu há alguns dias, coitado, grande alma, aliás, sem o reconhecimento que merecia.
Logo depois houve dois fenômenos desfavoráveis, que interromperam um pouco o espírito desenvolvimentista. Do nosso lado, o Getúlio, que não tendo tido resultados rápidos, nem no combate à inflação, nem na aprovação dos projetos da Comissão Mista, trouxe à tona o velho nacionalismo que tinha represado um pouco. E ele fez o famoso discurso de 31 de dezembro de 1951, que foi um choque mundial, acusando as empresas estatais estrangeiras de sugarem o país. Depois ele se arrependeu um pouco, mas o mal já estava feito.
Folha - Aí mandou o Walter Moreira Salles a Washington para tentar apagar o incêndio.
Campos - Isso. Então, o Banco Mundial, por exemplo, se retraiu, não queria mais conversa com o Brasil. O Eugene Black, presidente do banco, brigou mesmo. Disse: esse país é irracional. Não tem poupança, o presidente acusa os capitais estrangeiros de provocaram uma sangria nacional, o país precisa de petróleo para interromper a sangria e ele implanta um monopólio. Quer dizer, recusa investimentos estrangeiros para um setor altamente capaz de atrair investimentos. Então é um país irracional, não tem conversa.
Agora, do outro lado houve também um fenômeno desagradável. É que saiu o Truman (Harry S. Truman, presidente dos Estados Unidos), que bem ou mal era dominado pela psicologia de desenvolver o Terceiro Mundo. E entrou o Eisenhower, com a doutrina republicana. A doutrina republicana, no primeiro mandato Eisenhower, era ditada pelo George Humphrey, que era o homem da Hanna Mining, a maior empresa de mineração americana na época.
Folha - E, como tal, detestava o Brasil por causa do episódio do manganês do Amapá.
Campos - Primeiro, ele já tinha nojo do Brasil. Segundo, ideologicamente, ele achava que tudo tinha que ser capital privado. Eu me lembro de ter discutido várias vezes com ele. Eu dizia: olha, eu sou ``privatista", mas até para a gente poder atrair investimentos privados é preciso ferrovia e rodovia.
Nós tivemos uma ressurreição do ânimo de desenvolvimento. Isso foi um problema, um acidente de personalidade. Era a conjugação de Lucas Lopes, que tinha a tecnologia, e Juscelino, que tinha o entusiasmo. Então, o Juscelino introduziu uma nova tônica de desenvolver 50 anos em cinco. Fez a besteira de Brasília, mas no fundo, ele provocou também um surto industrial no Brasil.
Folha - Qual a vantagem do Juscelino sobre o Getúlio?
Campos - O Juscelino só explorou o nacionalismo no fim do governo, quando estava em dificuldades, e promoveu a briga com o Fundo Monetário Internacional. Mas durante quatro anos ele procurou habilmente mudar a tônica do Getúlio, que era só querer empréstimo do exterior. O Juscelino pensou corretamente. Antes de tomar posse foi à Europa atrair investidores de risco. Ele conseguiu fazer desenvolvimento sem o Banco Mundial.
O Banco Mundial estava brigado com o Brasil. Mas ele trouxe para cá a Mercedes Benz, a Krupp, a Pirelli, várias indústrias, uma porção de gente na base do capital de risco. Ele acabou deixando o Brasil numa enorme crise cambial, mas não foi por causa de uma atitude errada em relação ao capital estrangeiro. Foi por causa da taxa cambial desatualizada, porque o Plano de Metas foi executado em grande parte com capitais de risco. Essa foi a grande virtude de Juscelino nos primeiros anos. Quatro anos depois e ele voltou a um nacionalismo tático. Mas ele mudou a psicologia brasileira.
Folha - Há quem diga que ele era uma pessoa quase ignorante em termos econômicos. De onde veio essa intuição para os novos tempos?
Campos - É curioso, porque ele era médico urologista e não havia porque acreditar que tivesse inclinação desenvolvimentista. Foi a ambição política que o levou a descobrir o tema. E se ele não tivesse pervertido esse tema com a idéia de Brasília, nós teríamos avançado muito mais, porque ele teria feito isso tudo sem inflação ou com pouca inflação.
Brasília foi um desastre. Desorganizou a administração, causou a inflação e provocou corrupção, entende? Brasília é um fator de corrupção. Se eu tivesse tempo ia fazer um estudo sociológico da contribuição de Brasília para a corrupção. Para os funcionários irem a Brasília, você precisou tentá-los com a ``dobradinha", o duplo salário. Com isso, já comprou o funcionário.
Depois, quando terminou a fase pioneira e se retirou o pagamento em dobro, os funcionários já tinham mordomias: transporte gratuito, alimentação. Aí surgiu um problema. Um funcionário público, tradicionalmente mal pago, numa cidade como o Rio e São Paulo, faz bicos. Que bico você tem em Brasília? Não tem bico, não há jeito. Resultado: ele considera a propina um salário suplementar útil, necessário e justo, incorreto, para compensar o pagamento insuficiente do governo. A mentalidade da propina ficou sacralizada em Brasília e legitimada pela necessidade de sobrevivência do funcionário.
Folha - A fase Castello é vista quase unanimemente pelos historiadores como uma das mais relevantes da história do país, pelo conjunto de reformas conduzido pelo sr. e por seu colega Octávio Gouveia de Bulhões. Como conseguiu esse espaço para as reformas?
Campos - Eu disse várias vezes ao Castello que ele estava condenado a ser um contador, a pagar contas, porque o Juscelino acumulou contas, Janio não teve tempo de pagá-las e Jango não queria pagá-las. Então, o governo do Castelo era um governo que recebeu a massa falida, sem crédito interno e sem crédito externo, não havia obrigações do Tesouro. O que fazer?
Eu ofendi o Castello até ao dizer: a única coisa que se pode fazer, e é útil para o Brasil, são as reformas. Então vamos fazer as grandes reformas institucionais. Ele percebeu isso, foi muito humilde, não quis reclamar crédito de obras, não quis fazer obras. Acabamos fazendo algumas, concluímos a Belém-Brasília, que o Juscelino tinha deixado nos acessos (porque antes de construir a estrada, ele construiu os acessos) e começamos Ilha Solteira. Mas era um governo deliberadamente modesto em sua ênfase sobre obras. Agora, era extremamente ousado e quase autoritário na promoção de reformas. E, curiosamente, e apesar de sem coordenação mútua, nós soubemos que os asiáticos faziam precisamente a mesma coisa. O modelo Castello Branco era o modelo asiático com duas ou três diferenças.
Folha - Será que o centralismo político do regime militar não foi o maior impedimento para que o país caminhasse em direção a esse mundo mais desregulamentado que se pretende hoje em dia?
Campos - Bom, o que eu questiono é o grau de centralismo, porque geralmente se falava no centralismo fiscal. Mas o modelo que naquela ocasião se quis implantar era o chamado modelo do federalismo cooperativo.
Se você estudar a Emenda Constitucional nº 18, ou o Código Tributário, não é centralista como se diz. Havia uma certa centralização de receita, aliás, nem era de receita, mas centralização de coleta. Mas de fundos partilhados, porque é muito mais econômico fazer a coleta central. A centralização veio depois que nós saímos.

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