São Paulo, terça-feira, 1 de novembro de 1994
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O Rio dominado pelo crime

HÉLIO JAGUARIBE

As favelas cariocas de hoje apresentam certa analogia com o acampamento de Canudos
A mais inequívoca e ostensiva característica do Grande Rio de Janeiro, presentemente, é o fato de se encontrar sob o domínio do crime organizado. Tal circunstância faz de sorte a que os moradores do Rio se sintam, cada vez mais, como reféns dos bandidos, situação que já se tornou objeto de constatação universal e acabou com o turismo no Rio.
O crime regula a vida da cidade, impondo, a seu arbítrio, interdições no uso de determinadas áreas. Tiroteios se tornaram parte da rotina urbana, não-somente nas favelas e suas proximidades, mas no próprio centro urbano, em Ipanema, nos túneis, na Linha Vermelha. Crescem em escala geométrica os assaltos, sequestros e assassinatos.
Às vítimas desses atentados se soma o número, também velozmente crescente, de balas perdidas atingindo moradores, em suas casas, crianças, em suas escolas, transeuntes, em todas as vias públicas.
Nenhuma cidade com pretensões à condição civilizada, desde a Chicago de Al Capone, esteve submetida, tão ampla e impunemente, como o Rio, ao domínio dos bandidos. Como se pode chegar a tal situação? Como sair dela?
O domínio do Rio pelo crime, como todos os fenômenos sociais mais complexos, decorre da conjugação de muitos fatores e requer, para sua análise, que se diferenciem distintas camadas de profundidade.
Na camada imediatamente aparente observa-se que um conjunto de bandos de criminosos profissionais, controladores do narcotráfico, contando com cerca de 3.000 facínoras, extremamente bem equipados e dispondo de imensos recursos, com fácil e abundante renovação de quadros, apoiados por um amplo sistema de cumplicidades, têm completo predomínio sobre as forças policiais.
Estas, profundamente desmoralizadas, desequipadas, mal pagas, infiltradas, em todos os níveis da hierarquia, por agentes corrompidos pelos narcotraficantes, quando não ativos cúmplices dos mesmos, carecem de unidade de comando e se defrontam desestimuladoramente, na cúpula da administração e da política do Estado do Rio de Janeiro, com as mais diversas modalidades de tolerância com o crime.
Por que se chegou a tal situação? Mais uma vez, vários fatores se conjugaram para gerá-la. Mencione-se, entre os mais relevantes, a degradação sofrida pela cidade, depois do negativo impacto decorrente da transferência da capital para Brasília, com a fusão, que rebaixou o bom nível administrativo e fiscal do Estado da Guanabara ao miserável patamar do Estado do Rio de Janeiro.
Mencione-se, como efeito decorrente dessa e de outras causas, o esvaziamento econômico do Rio, com a transladação de suas atividades produtivas para São Paulo e outras regiões e de suas cúpulas dirigentes para Brasília.
Mencione-se, finalmente, o fenômeno do brizolismo, que tem, direta ou indiretamente, controlado a política do Estado nos últimos 12 anos, o qual, independentemente das boas intenções sociais de seu líder, resultou num populismo das massas marginais, no âmbito das quais opera o crime organizado, gerando, assim, situações em que a repressão a este suscita naquelas efeitos eleitorais negativos.
Numa dimensão mais profunda, a situação a que foi conduzido o Rio de Janeiro decorre do fato e o Grande Rio se haver tornado uma amostragem concentrada dos problemas sociais do Brasil.
Convivem, na mesma cidade e nas mesmas ruas, um dos mais modernos setores da população brasileira, inserido no terciário da gestão informatizada da economia e da alta cultura, com um dos mais primitivos, deseducados e miseráveis segmentos de nossa população, vivendo da camelotagem e dos biscates, muitos induzidos a complementar seus ínfimos rendimentos com proventos de variável grau de ilicitude.
Acrescente-se, a esse quadro de ignorância, miséria e marginalidade, o fato de que a concentração dessa população em favelas, destituídas de condições mínimas de urbanização, de onde está completamente ausente o serviço público, só esporadicamente representado por comandos policiais repressivos, nelas gerou uma cultura da violência, distinta da cultura urbana.
As favelas cariocas apresentam certa analogia com o acampamento de Canudos, em que, em lugar de sertanejos místicos, vivem os excluídos da urbanidade. Nesse complexo mundo que é a favela, em que a maior parte das pessoas são honestos trabalhadores de baixa renda, que somente nela encontram sua possível moradia, a cultura da marginalidade, decorrente da convivência da ignorância e da miséria com o crime organizado, conduz a uma inevitável hostilidade à civilização da urbe, de que não participam os favelados. O bandido, dispondo de dinheiro abundante e fácil, conquista a cumplicidade da favela combinando a distribuição de favores com o exercício do terror.
Acrescente-se que uma análise, por mais breve que seja, do fenômeno do banditismo, não pode omitir uma outra dimensão profunda do crime organizado: a que se refere à inanidade da criminalização da droga.
Para tentar evitar que aumente de um pequeno percentual o número de drogados, a criminalização da droga tornou o mundo civilizado refém dos narcotraficantes, gerando um dano social infinitamente superior ao que pudesse resultar da liberação dos estupefacientes.
Precisamente como no caso da proibição do álcool, que gerou Al Capone, enquanto sua discriminalização não teve maiores efeitos negativos. Ocorre, apenas, que um problema dessa natureza não pode ser resolvido nos limites de um só país e, muito menos, de uma só cidade.
Há muitas coisas a fazer, para acabar, de forma estável, com o domínio do crime no Grande Rio. A longo prazo, nada se poderá conseguir se persistirem nessa cidade –neste país– altas taxas de ignorância e de miséria, combinadas com a falta de um mínimo atendimento social. A curto prazo, entretanto, todo sociologismo é inoperante, resultando, objetivamente, em acomodação com o crime.
O controle do crime tem necessária e urgentemente de começar pela repressão ao banditismo, o que, no Rio, somente será possível com a mais ampla e ativa participação das Forças Armadas.
Os recentes entendimentos entre os governos federal e estadual, que esperamos sejam imediatamente postos em prática, apontam na direção correta.
Importa começar logo a agir. Mas importa, também, concomitantemente, elaborar e dar início de execução a um amplo programa, a se realizar por sucessivas etapas, que assegure às populações de baixa renda condições minimamente satisfatórias de vida.
É preciso, urgentemente, dar o necessário atendimento aos desvalidos e interromper, de uma vez por todas, o ciclo de reprodução social da ignorância e da miséria. Ou o Brasil acaba com a miséria ou terminará nela soçobrando.

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