São Paulo, quinta-feira, 3 de novembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Vietnã também é aqui?

OTÁVIO FRIAS FILHO

Otavio Frias Filho
Sacudidos pela insistência de seus correspondentes, editores sonolentos nos dois lados do Atlântico Norte vão acabar entendendo que o Exército brasileiro declarou guerra ao crime em Copacabana. E que isso é notícia.
Mesmo a opinião pública interna parece não se dar conta da gravidade do passo. Desde o fim do regime militar, é a primeira vez que o Exército sai da rotina a que se recolheu. Desde o Império, salvo engano, é a primeira vez que se dedica a combater o crime comum.
Terá sido necessário? Resposta afirmativa pressupõe que estamos dispostos a pagar por um preço que ainda não conhecemos. O argumento é que o Rio se tornou um caso de decomposição terminal, que somente a mais agressiva das cirurgias pode estancar.
Argumento oposto diz que o Rio é apenas sintoma de problemas estruturais, ampliado pela gritaria da mídia e pelo simbolismo que a cidade exerce sobre a identidade nacional.
Os analistas criteriosos se inclinam por esta segunda opção, mas testemunhos diários teimam em reiterar a outra.
Tenho a impressão de que nunca saberemos ao certo. As estatísticas, como sempre, são confusas e aleatórias, se é que confiáveis. Toda causa apontada remete a uma cadeia delas; as soluções propostas se esvaem em círculos concêntricos.
Para nós, interioranos, não é fácil compreender o Rio de Janeiro. Ali se acumulam os traços convulsivos da metrópole decadente, cidade portuária e ex-capital política. Há uma ironia e um ressentimento, um amoralismo e uma superioridade cariocas que a fama internacional só agravou.
Junto com o vapor caribenho que recebe na cara, quando se abrem as portas da ponte-aérea ou do ônibus, o forasteiro encontra essa certeza: aqui é o Brasil. A impressão redobra na autoconsciência carioca, que se julga, com razão, o centro mental do país, do qual o espírito mineiro, baiano etc. seriam expressões parciais.
Um paulistano, por exemplo, não tem Pão de Açúcar nem Corcovado, não sabe o que é viver num santuário de marcos, relíquias e identidades; nem se pode dizer que ama ou detesta a sua cidade porque ele geralmente não concebe relações desse tipo com ela.
Mas o Exército não se importa com tais questões, nem deveria. Como bem disse um ministro militar, o Exército cumpre ordens e ponto. Vamos bem até agora: dentro da Constituição e com um grau de transparência pública que o próprio exército americano não tem mostrado nas incursões recentes.
O que vai ocorrer é incógnita maior, muito maior do que o futuro do Plano Real. Há fumaças de Vietnã: exército despreparado para esse tipo de combate; discussão democrática na retaguarda; convivência amistosa entre inimigo e população civil; corrupção nas forças aliadas e acintosa tentativa de politizar a luta por parte do comando oponente.
Como ser eficaz sem exorbitar da lei, como ser rápido sem exterminar inocentes, cumprir a missão sem atolar numa "guerra sem fim": essas equações as Forças Armadas terão de resolver, no que talvez seja o grande teste para sua maturidade institucional.

Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.

Texto Anterior: Abertura cubana
Próximo Texto: O bufão e o rei
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.