São Paulo, quinta-feira, 3 de novembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O bufão e o rei

Carlos Heitor Cony
RIO DE JANEIRO – Uma das crueldades do meu ofício é ser condenado aos acontecimentos. No particular, o jornalista se parece um pouco (ou bastante) com o palhaço: o filho está à morte, acaba de enterrar a mulher, mas o picadeiro é sua obrigação, "o empresário vem bater-lhe à porta que a platéia o reclama impaciente". E o famoso soneto termina com o clássico: "Enquanto o lábio trêmulo gargalha, dentro do peito o coração soluça!"
Não cultivo o gênero trágico, paro por aqui, mas as semelhanças, ou melhor, as analogias, são profundas. Como o palhaço, o jornalista tem essa obrigação com a platéia que reclama, de um a palhaçada, de outro a notícia ou o comentário –o que vem dar mais ou menos na mesma.
Não é nada, a imprensa já deve ter enchido os leitores com a crise do Rio, assim como os leitores já devem estar saturados de Plano Real, de palpites sobre o novo governo, enfim, os temas do dia nascem, crescem, tornam-se medonhos, é uma invasão de marcianos até que, como na canção infantil, dizem adeus e vão embora –e já vão tarde.
Gosto de citar aquele bufão do "Rei Lear". Na realidade, ele não chega a dizer nada que se aproveite, mas o que importa é o rei e não o bufão. Abandonado pelas filhas, abandonado por si mesmo, ele quer o bufão perto de si, tal como o empresário do soneto reclama o palhaço. O bufão é o mesmo de sempre, mas subitamente o rei descobre que o bobo da corte o chateia mais do que o diverte. E constata: "És um bufão amargo!"
Já usei esse bufão amargo para definir Carlitos. Vejo agora que ele serve senão para definir ao menos para explicar o jornalista. Somos amargos bufões a serviço de um rei desolado que não chegamos a distrair.
Não fazemos a circunstância, somos feitos por ela –daí a monotonia do ofício: somados os centímetros quadrados de texto, Castor de Andrade vale mais do que Mário de Andrade. E a onda de violência no Rio é mais importante do que a criação do Sol e das outras estrelas.

Texto Anterior: Vietnã também é aqui?
Próximo Texto: Quadrilhas motorizadas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.