São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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Os 13 de Nova Brasília

MARCELO LEITE

A histeria com a violência no Rio, desencadeada por uma chacina, representa oportunidade única para refletir sobre a responsabilidade de meios de comunicação e governantes.
Com o ar compungido que cabe portar em face da tragédia súbita e artificialmente notória, todos eles concordam em que "é preciso fazer alguma coisa". E deram início a uma das mais revoltantes exibições públicas de oportunismo de que se tem notícia no Brasil, traficando com a segurança e o destino de centenas de milhares de habitantes dos temidos morros.
Parece até que antes do assassinato de 13 pobres diabos –traficantes, talvez, mas nascidos e mortos pobres diabos– na favela de Nova Brasília não havia problemas no Rio. Ou, melhor dizendo, antes de a eleição para governador encaminhar-se a um segundo turno em que um candidato da ordem henriquista enfrenta um representante da barbárie pedetista –mais uma de tantas mistificações que despolitizam esta eleição, confinando-a a um jogo de imagens vazias, como a suposta guerra religiosa em São Paulo.
Para o bem e para o mal, a imprensa é o teatro em que se encena esse drama macabro.
A melhor indicação de que a matança daquele 18 de outubro foi somente um pretexto para pôr o Urutu em marcha é que ninguém mais se lembra dela. A sociedade nada sabe, e aparentemente nada quer saber, sobre as responsabilidades por aquele crime bárbaro.
Quando muito, fica a memória confusa daquela fileira de corpos jovens e mulatos enfileirados, sob a inscrição "Obrigado, Senhor, por mais um dia". Mais uma imagem que se funde na penumbra de tantas primeiras páginas, em que já não se distingue Carandiru de Vigário Geral, Candelária de Francisco Morato.
Posso até cometer alguma injustiça, mas não me lembro de algum jornal ter noticiado as conclusões da investigação. Não há sequer um responsável preso ou indiciado. O público desconhece se foram realizadas autópsias nos 13 mortos, providência elementar quando se suspeita de que policiais tenham executado os jovens a sangue frio; se feitas, que resultados tiveram.
Nenhum jornal se preocupou ainda, passadas quase três semanas, em informar seus leitores sobre isso.
Em contrapartida, avolumam-se informações descartáveis, como a espessura do muro construído na delegacia atacada antes da chacina. Atenta-se para os mínimos detalhes das reuniões em que Itamar Franco planeja o Vietnã que vai legar a seu sucessor, com o mesmo afinco com que se persegue a identidade da namorada de ocasião daquele que já não parece mais enxergar-se como presidente da República, se é que algum dia o fez.
De informação, que é bom, muito pouco. A revista "Veja" levantou a pista, domingo passado, de que na origem da mirabolante idéia de uma intervenção federal no Rio estava um famigerado amigo presidencial, José de Castro, hoje instalado na Telerj. Estranhamente, os jornais não foram atrás.
Antes disso, tinha chegado a elogiar a Folha por sua postura equilibrada em relação às mortes na favela Nova Brasília. Na crítica interna que circula diariamente na Redação, referente à edição de 19 de outubro, anotei que o jornal se destacava dos outros "no tratamento mais distanciado das informações da polícia, na caracterização inequívoca da invasão como uma represália e na publicação de um editorial duro, o único do dia dedicado ao acontecimento".
Não basta, porém, marcar posição. Um grande jornal é capaz de converter convicções editoriais em pautas audaciosas para reportagens e em ímpeto investigativo, seja nos morros do Rio, seja nos gabinetes de Brasília. Neste aspecto, a Folha começava a ficar para trás.
Os dois jornais de maior prestígio no Rio, "O Globo" e "Jornal do Brasil", punham lenha na fogueira da intervenção federal. E isso depois de terem publicado registros bem mais discretos que os diários de São Paulo sobre a matança em Nova Brasília. Com a perspectiva de ver batalhões de soldados expostos à mira dos traficantes entrincheirados, parece que se assanharam.
Partiram então para manchetes enviesadas como a de "O Globo" em 25 de outubro, "Itamar tenta apoio de Nilo contra o crime" (ou seja, subentende-se que o governador fluminense não estaria propenso a dá-lo). A única explicação plausível para tal comportamento é devastadora para um órgão de informação pública: dificultar a vida do governador e, por tabela, a do candidato de seu partido, Anthony Garotinho (PDT) no segundo turno.
Paralelamente, "O Estado de S.Paulo", concorrente direto da Folha até em uma posição mais favorável à intervenção, mantinha seu noticiário relativamente imune. Publicava reportagens informativas, de um modo geral bem mais interessantes e detalhadas do que as da Folha. Esta permanecia presa de uma letargia que não se sabia se provinha de falta de informação ou de espaço (o jornal saía de uma crise de fornecimento de papel que mutilara seus cadernos).
Assim seguiu até a última quarta-feira, um dia dos mortos em que poucos se lembraram dos 13 de Nova Brasília. Foi quando a Folha resolveu injetar um pouco de adrenalina na cobertura do recém-assinado convênio Itamar/Nilo –e meteu os pés pelas mãos, com a manchete "Nilo quer limitar ação do Exército".
Supostamente a sustentá-la havia uma boa entrevista da Sucursal do Rio, em que Nilo se escudava em raciocínios formalistas e constitucionais para tentar mostrar, muito na defensiva, que sua autoridade não havia sido arranhada. Mas a primeira página da Folha o apresentava como um homem de bravatas: "Governador diz que manda na segurança do Rio", dizia o subtítulo (ou linha-fina, no jargão dos jornalistas).
Na edição seguinte, de quinta-feira, o jornal reencontrou o caminho da sobriedade e do melhor jornalismo. Publicou cinco páginas de reportagens, trouxe textos críticos e investigativos até de dois diretores de sucursal (Rio e Brasília). Anotei porém na crítica interna da edição que o "Estado", mesmo ficando para trás no aspecto interpretativo, ainda apresentava desempenho melhor na quantidade de informações.
Os próximos dias e semanas dirão quem sairá vencedor dessa guerra (porque da outra, a que já come solta há muito tempo nos morros do Rio, tenho certeza de que sairão derrotados os pobres diabos de sempre). Mas tomo a liberdade de reproduzir aqui o fecho de minhas observações dirigidas à Redação na última quarta-feira, pois acho que se aplicam bem a toda a imprensa:
"Se me alongo nestes comentários, é porque não quero ver a Folha acusada de apostar no fracasso da tentativa de pôr ordem no Rio apenas para obter manchetes mais vibrantes."
Mesmo se recusando a lembrar os 13 de Nova Brasília, é o mínimo de respeito que os jornais lhes devem. E aos que estão por vir.

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