São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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A lei deve ser como o sol sem eclipses

OSIRIS LOPES FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Devo reconhecer que algumas propostas que venho defendendo nesta coluna –combate à sonegação como forma de se obter arrecadação adicional e diminuição da carga tributária individual– carecem do charme e do fascínio das grandes reformulações constitucionais, que alguns arautos tonitruantes das reformas estão a alardear.
É hora de o Brasil do Plano Real ter um encontro com o Brasil real. Sair-se da prática do monitoramento normativo para realizar a administração da realidade do país. Chega o momento dos tecnocratas e políticos todo-poderosos pendurados em seus galhos brasileiros (seria inadequado falar, no Brasil, em torre de marfim) caírem na real.
O coordenador de arrecadação da Secretaria da Receita Federal, dr. José Alves da Fonseca, técnico de reputada competência, divulgou um estudo simples, mas dotado de inteligência investigativa, que desnuda a fragilidade de nossas instituições e expõe a irresponsabilidade avassaladora de certas elites municipalistas na sua volúpia desenfreada de criação de novos municípios, com recursos alheios a custear toda uma nova burocracia.
É um produto indigesto e indigente da Federação tupiniquim que, em originalidade de consistência duvidosa, elevou o município, de sua autonomia histórica, a membro do pacto federativo.
O estudo trata da distribuição geográfica da arrecadação federal. Mostra que na maioria dos municípios do país a arrecadação é tão baixa, baixíssima, a indicar aparentemente um estado generalizado de pobreza, que possivelmente se credenciariam junto ao Betinho e d. Mauro, para que a todas as suas populações sejam destinadas cestas básicas de alimentos, a fim de terem condições mínimas de sobrevivência.
Pelos dados divulgados, em tais municípios toda a população seria uniformemente miserável, sem que se pudesse encontrar ao menos um abastado que seja.
Há municípios em que a arrecadação tributária federal mensal está abaixo de R$ 10,00. Em outros 212, é inferior a R$ 110,00; em 638, é menor de R$ 500,00; em 1.001, situa-se num limite menor do que R$ 5.000,00; no final, há 2.609 municípios cuja arrecadação federal total, em cada mês, está abaixo de R$ 10.000,00.
É inverossímil que não exista em cada um desses municípios pelo menos um latifúndio para pagar o Imposto Territorial Rural, ou uma revendedora de automóveis ou implementos agrícolas para pagar a Cofins, ou uma agência bancária na qual se façam aplicações financeiras que possibilitem a arrecadação do Imposto de Renda na fonte ou o IOF.
Esse número de 2.609 municípios representa mais da metade dos 4.900 existentes em dezembro de 1993, quando foram feitos os levantamentos territoriais básicos para o estudo, embora se saiba que hoje são cerca de 5.500 municípios. Pela tendência, esses 600 novos municípios hão de estar na mesma situação dos 2.609.
O que mostram esses números? Sem dúvida, que há um Brasil pobre espalhado pelo interior. Mas demonstra também um absurdo nível de evasão tributária. Evidencia, ainda, a impotência da administração tributária de alcançar todas as áreas geográficas, com sua ação vigilante de exigir o pagamento do tributo devido.
Há dados indicativos da concentração da arrecadação federal, demonstrando que cerca de 70 empresas são responsáveis por 50% da arrecadação de IPI; 170, por 50% da arrecadação do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica; e 350 empresas, por 50% da Cofins.
Aparentemente, verifica-se uma tendência tremenda de concentração do poder econômico no país. Concentração existe, sem dúvida. Entretanto, não na intensidade que uma análise epidérmica desses dados pode propiciar. Existe de fato é um fantástico nível de evasão de pequenas e médias empresas, que não pagam os seus impostos devidos ou pagam quando querem.
Basta apenas sair à rua e fazer algumas compras, para se constatar que não lhe vão dar as respectivas notas fiscais. A não-emissão de nota fiscal significa clara, aberta e deslavada tendência à evasão.
Afinal, quem paga imposto entre as empresas? Sem grandes sacrifícios, apenas os oligopólios ou monopólios que, por terem domínio do mercado, têm como transferir mais facilmente a carga tributária embutida nos preços das mercadorias para o consumidor final.
Esses dados confirmam o que venho insistentemente repetindo: não adianta realizar apenas reformas legislativas, alterando a norma tributária vigente. O decisivo é dispor-se de uma administração tributária atuante, bem equipada, competente, que tenha condições operacionais em todo o território nacional. Afinal, a lei deve ser como o sol, para todos. Sem eclipses.
Não há muitos recursos humanos na administração tributária. É necessário valorizá-los e potencializar a sua ação. Deixar florescer milhares de "Zés Alves", que conseguem com seu talento utilizar criativamente as informações disponíveis.
É preciso mudar o que tem sido quase a regra geral: quem tem pago imposto voluntariamente situa-se num plano de ascensão ética tão elevado, que já tem passaporte visado para a santidade; ou que, temente à ferocidade do "leão", deseja fugir ao salvo-conduto para a cadeia por sonegação.

OSIRIS DE AZEVEDO LOPES FILHO, 55, é professor de Direito Tributário e
Financeiro da Universidade de Brasília, advogado e ex-secretário da Receita Federal.

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