São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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"A publicidade é um cadáver que fede"

Folha - Com efeito, a resistência palestina acreditou que o adversário da Palestina fosse o mundo ocidental em seu conjunto.
Toscani - Foi uma maneira de fazer as pessoas pensarem no problema da Palestina.
Folha - É um tipo de "art directing" que não encontra minha simpatia.
Toscani - Quem decidiu o que foi decidido em 1948? Todos estiveram de acordo que eles se tornassem prófugos.
Folha - Aliás, nos anos seguintes, nem os países árabes se revelaram muito interessados no destino deles.
Toscani - A autodeterminação dos povos é um dever. Eles fizeram seu dever.
Folha - Nosso conceito de autodeterminação talvez não seja o mesmo que eles têm. Por exemplo, parece que, para eles, contrariamente ao que acontece conosco, e contrariamente à própria idéia de "United Colors", os outros são tão pouco humanos que podem ser assassinados aleatoriamente.
Toscani - A diferença deve ser entendida.
Folha - Mas nem sempre pode ser ultrapassada sem dificuldade. O eixo mundial de conflito não é mais Leste-Oeste. O seu último catálogo da Benetton, aliás, foi feito na Hungria. Este eixo de conflito quase sumiu e eis que para o próximo catálogo você está em um país árabe. É o novo eixo de conflito, Norte-Sul. Um eixo não só econômico, mas também cultural.
Toscani - Efetivamente muito mais complexo. É possível aliás que esta história toda acabe mal. Sempre haverá conflitos inconciliáveis. E surgirão novos problemas, novas situações. Para o tempo que durará a inteligência humana, haverá problemas, destruição e degradação. Os animais não humanos não produzem isto. Eles estão de acordo com a natureza. Só a publicidade consegue imaginar a inteligência humana em perfeito acordo com a natureza. Que imbecilidade.
Folha - Alguns pensam que, mais fácil do que mandar um míssil para Bagdá, seja em Bagdá abrir um McDonald's. O efeito, embora criticável pela destruição de diferenças que implica, talvez possa ser de pacificar as relações.
Toscani - É uma violência social. Nós impomos o McDonald's. Como para os espanhóis foi fácil cativar os índios com espelhinhos.
Folha - Mas não foi só isso, não foram só os espelhinhos. O próprio da cultura ocidental, talvez seu núcleo decisivo é, aliás, a mensagem mesma de sua comunicação, ou seja, a idéia de que a humanidade tem a mesma extensão que a espécie humana. Somos diferentes, mas todos humanos. Por formal que seja, este reconhecimento permanece. Outras culturas não têm esta posição, são muito mais excludentes do que a nossa. É isso que faz a força expansionista de nossa cultura: ela se expande porque reconhece sempre, em princípio, como humanos, aqueles que quer integrar. Por isso, até agora ganhou em expansão.
Toscani - Os indianos da Índia não praticam uma violência excludente.
Folha - Como não: é uma sociedade de castas.
Toscani - A nossa também é.
Folha - Pode haver castas de fato, mas na verdade cada um tem direito de aceder a uma "casta" diferente daquela onde nasceu. Um indiano não pode.
Toscani - Na nossa não é assim?
Folha - Pode acontecer de fato, mas não é assim de direito.
Toscani - Um indiano pode pegar um passaporte e ir embora.
Folha - Certo, pode ir embora para Nova York, justamente para uma cultura diferente, nossa cultura. Uma das razões pelas quais o Ocidente triunfa em sua difusão é porque fundamentalmente, para nós, qualquer sujeito, independentemente de sua origem, cor ou crença, em princípio tem direito a fazer parte da humanidade. O que não é o caso para as outras culturas. A mensagem "United Colors" vale para nós. Comunicá-la, promovê-la, é também promover nossa cultura. Do mesmo jeito que um dia se abrirá aqui em Gaza um McDonald's e uma loja da Benetton.
Toscani - Benetton também é monocultura. Eu sou contra a monocultura. A monocultura mata as línguas. Havia 50 mil línguas no começo do século, agora há 5.000 e de fato se fala uma só. Perdemos muita humanidade. A monocultura também cria desemprego.
No caldeirão de humanidade gosto de ir olhar nos cantos, onde a polenta cola. Olhar não significa necessariamente compartilhar ou estar de acordo, mas pelo menos reconhecer que estamos no mesmo caldeirão junto com as encrustações onde a polenta cola. Não há sociedades isoladas, a humanidade é só uma, há quem compra e quem morre de Aids, quem é canalha e quem não é, e muito frequentemente estão no mesmo elevador. E não entendo como poderia haver expressões, sobretudo artísticas, produzidas pelo homem, que sejam destacadas disso.
Folha - Ontem, em um campo de refugiados perto da praia, e de novo hoje na cidade, as crianças nos receberam dizendo "Eu Hamas", uma espécie de provocação. Para se fazer valer, para dizer que eles são da linha dura.
Toscani - A criança não é Hamas, eles dizem isto porque o único valor deste país é Hamas. Se não o que eles seriam? Miseráveis quaisquer. Você tem a Coca Cola e eu sou Hamas. Estou escrevendo um livro, que estará pronto em março: "Cruz, Suástica e Coca Cola", três grandes símbolos da comunicação, três grandes polos da publicidade. O Hamas pertence à suástica.
Folha - Quem vai ganhar, a Coca Cola?
Toscani - Talvez não. Não há verdadeiramente batalha entre os três símbolos. Cada um dos três precisa dos dois outros. São um trio. Um ou o outro pode prevalecer a tal ou tal momento, mas na realidade, juntos, eles resumem a comunicação do ser humano. A publicidade em particular pertence aos três.
O livro que estou escrevendo é sob a forma de uma carta para meu filho Rocco, de 14 anos, para lhe explicar o que é a publicidade. É um livro muito simples, para as escolas, os colégios, onde eu penso que seria preciso ensinar a ler a publicidade e em geral a nova comunicação. Hoje a leitura não são só os livros.
Hoje, as imagens são a realidade. Mais do 90% do que conhecemos, conhecemos por imagens. Temos opiniões sobre coisas que só conhecemos por imagens. Fico na frente da televisão e digo: vi Ruanda, a floresta amazônica, em Sarajevo a situação é grave. Clinton fez um discurso de bobo etc. Na verdade o que eu vi? Eu só vi a televisão. Aliás, exatamente a mesma coisa que todos viram e ainda por cima me isolando dos outros. É cômico.
Folha - É o fim da dimensão de experiência como fonte do conhecimento. Na publicidade você não salva nada ou ninguém?
Toscani - A publicidade em geral está morta, é um cadáver que fede e sobre o qual continuam jogando grandes garrafas de perfume francês. É uma imunda podridão. Imagina um arqueólogo num dia futuro em que a terra tenha sido coberta, como Pompéia. Ele encontra uma revista semanal de hoje: na capa Sarajevo, abre e encontra o Club Mediterranée, vira a página e há um serviço contra o alcoolismo, depois uma propaganda de Chivas Regal com umas garotas incríveis, depois Sarajevo, vira de novo e encontra a publicidade da Rolls Royce. "Mas o que está acontecendo?", ele vai dizer, "talvez seja por isso que tudo acabou sendo destruído". Depois ele vira mais uma página e encontra minha publicidade, a camiseta empapada de sangue. Ele se perguntará: "Por que este cara não funcionava com o resto? É minha propaganda que colocará em crise a dos outros". A comunicação comercial existirá sempre.
Até a pintura da Renascença era comercial; não havia indústria, não se vivia de comércio como nós entendemos isto hoje, mas a comunicação aplicada sempre existiu e vai existir. As pessoas, naquela época, entravam na igreja e recebiam uma comunicação incrível. Imagina que respeito para com o público: chamavam Michelangelo para mostrar as imagens da fé a uma bancada de analfabetos. E nós agora? Nós, hoje, dizemos: "As pessoas não entendem nada, damos para eles uma merda". É maluco.
A arte era também comunicação. A pintura e a escultura serviam para mostrar o poder. Assim como as indústrias podem querer mostrar seu poder hoje. Mas o que elas nos contam? Que Dash lava mais branco? E isso gastando milhões de dólares? Imaginam que devem falar de seus produtos. Mas o produto só nos dá complexos. Temos nos armários roupa para três vidas, vamos então pensar em vivê-las melhor, estas vidas.

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