São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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Os maiores conformistas do mundo ainda são os publicitários

A comunicação é como a música popular. Também há como fazer músicas que falam da vida e da morte e que vendem milhões de discos. E ninguém acusa os músicos de especular sobre a vida e a morte para vender discos. Outro exemplo: "A Lista de Schindler" é uma especulação sobre os campos de extermínio ou é um filme interessante? Então, não venham me acusar de tocar em tais ou tais problemas para vender produtos. Para comunicar algo interessante, é preciso tocar em problemas.
Folha - A verdadeira crítica do industrial, que preferia o comercial das massas Barilla, talvez seja que você pertuba a sua tranquila ilusão de participar de um mundo encantado, de passear no centro de Milão sem ver os drogados, só um campo de trigo.
Toscani - Se matei seu sonho, ele deveria me agradecer. De fato, me parece muito mais grave utilizar as falsas felicidades da Barilla para vender um sistema falso. Um sistema falso que gasta 18% em publicidade e cobra então um prato de massa 18% mais caro para produzir as cagadas que a gente vê na televisão. Estes fundamentalistas da televisão não querem que outros façam tentativas opostas a este sistema de gastos inúteis com uma publicidade feita de falsas felicidades.
A eles, eu digo: "Senhores, sou um garoto ou uma garota de 14 anos que não tem uma família feliz, que na escola está sendo excluído porque não tive a sorte de encontrar um professor inteligente, o único lugar de onde quem fala comigo parece me falar de maneira democrática é a televisão. Olho para televisão e vejo as propagandas, vejo que as mães são todas felizes, que os carros viajam em paisagens fantásticas, tudo é limpo, ordenado, e digo 'caralho mas eu sou mesmo um fodido' ". Garanto que a grande maioria dos jovens olha estas coisas como eu. Por isso, estes produtores de publicidade são assassinos sociais e o mínimo que eu, garoto de 14 anos, posso fazer é destruir automóveis, arrancar telefones públicos e jogar pedras para os carros de cima de um viaduto.
Folha - De fato é uma reação normal. As imagens de felicidade só podem se tornar persecutórias, desde que ninguém consiga mesmo se parecer com elas.
Toscani - Se não sou parecida com Isabella Rossellini sou uma fodida, se não tenho 16 válvulas no meu carro sou um impotente, se não me pareço com Claudia Schiffer melhor parar de vez de ser mulher, ou então me tornar anoréxica. Posso também entrar em crise existencial como tantas garotas de hoje que se sentem feias porque não são bonitas como as imagens que propagam estes imbecis da publicidade.
Folha - Ontem, você falava de Valentino, que está preparando seu novo catálogo refazendo imagens de "A Doce Vida" (filme de Fellini), com a modelo Claudia Schiffer...
Toscani - Um desastre. A moda foi isso durante muitos anos, a moda foi um teatro para bichas histéricas.
Folha - O catálogo que você está preparando aqui é outra coisa. Na verdade nem é bem um catálogo.
Toscani - Sim, há um catálogo comercial da Benetton (que não é feito por mim), para apresentar os produtos aos comerciantes. Mas o catálogo que eu faço, e que vai ser distribuído nas lojas do mundo inteiro a partir de janeiro, é um instrumento de comunicação, para mostrar até onde a produção de Benetton pode chegar. É mais uma curiosidade cultural.
Folha - Certamente não é feito para que os clientes comprem roupas na esperança de se parecer com os modelos. Agora, poderia pensar que também a mensagem de "United Colors" talvez acabe produzindo uma imagem, assim como as outras, as mentirosas. Talvez isso hoje seja inevitável. Seria a imagem de uma pessoa jovem, pelo menos de espírito, tolerante, aberta para as diferenças no mundo, atenta aos problemas e aos dramas atuais da convivência humana. Embora a campanha "United Colors" não seja em absoluto uma proposta de se identificar com modelos absurdamente belos, me parece que também se constitui uma espécie de imagem do homem e da mulher Benetton.
Toscani - Na verdade, não sei se as pessoas devem comprar Benetton ou não. Penso que uma empresa, e além disso sua comunicação devem ser algo mais; não devem se limitar a dizer para as pessoas que elas devem comprar. A comunicação deve comunicar, ela é um produto em si, não está lá só para servir o consumo. Um dia, aliás, acredito que a comunicação será vendida, não deverá pagar para ser publicada. Ora, cada firma tem seus produtos e deve ter também sua comunicação.
Ao lado dos carros da Fiat, deve haver a comunicação da Fiat, que aliás não existe, embora Fiat gaste em comunicação em um dia o que a Benetton gasta em um ano. E onde está a comunicação da Fiat? Eu me sinto ofendido que uma empresa, que de uma certa forma pertence ao Estado italiano, não tenha de fato nunca comunicado nada senão seu interesse em nosso consumo de seus produtos. Nunca me ensinou nada. Falo com o zelador, com o primeiro que passa na rua e me dirá algo mais interessante do que a Fiat. Me apavora que estas grandes empresas não tenham uma consciência civil.
Folha - Então uma empresa teria uma responsabilidade propriamente cultural.
Toscani - Primeiro ela tem uma responsabilidade para com os carros que ela vende e que não deveriam cair aos pedaços. Começam a se preocupar com a segurança, agora que talvez o próprio carro comece a ser um produto ultrapassado. E segundo, ela tem também uma responsabilidade social, com a comunicação. Vou ao cinema, ao teatro, pago a entrada e, de qualquer forma sempre aprendo alguma coisa, algo que me é comunicado. As pessoas se escandalizam com minha comunicação, mas eu me escandalizo com o fato que ninguém fala para mim, ninguém comunica comigo.
Folha - Suponho que o publicitário tradicional te diria que a publicidade não é uma obra beneficente, não é uma fundação cultural.
Toscani - Mas eu penso que um objeto é uma entidade política, cultural. Quem sabe comunicar de maneira inteligente, também vai fazer um produto inteligente, e confiarei nele. Os produtos mudam, são redesenhados; a comunicação é que capitaliza o nome, a marca. Se a comunicação for inteligente, a firma terá capitalizado; se não for, ela não terá capitalizado nada. Me diz o que é a imagem da Fiat se não a manivela do vidro que fica na mão?
Bem, o assassinato da criatividade pelo interesse econômico é muito grave, grave para a própria economia, para a produção. O criativo deve ter mais poder do que a administração caso contrário, é o triunfo da mediocridade.
Folha - Então, a comunicação de uma empresa se tornaria algo independente da administração e também da produção.
Toscani - Os produtos, mais ou menos, são todos parecidos. Quando são um pouco diferentes, se tornam iguais ao se copiarem, portanto, o que pode fazer a diferença é a comunicação. Mas existe também a comunicação que copia o vizinho. Por exemplo, Coca e Pepsi gastam bilhões e se copiam. No fim a comunicação é idêntica para as duas. Credicard, Amex e Visa fazem uma comunicação que é a mesma. Eles recorrem a pesquisas de mercado e assim acabam fazendo a mesma coisa. Você lembra uma propaganda e pode ser qualquer uma das três.
Os maiores conformistas do mundo são os publicitários, eles que tem nas mãos os maiores orçamentos, que poderiam produzir cultura de maneira extraordinária, não fazem nada. Em cada nação dita desenvolvida, o gasto publicitário é mais ou menos o dobro do gasto da educação pública. Com quais resultados? Isso é espantoso. Eu acuso os publicitários de imbecilidade.
Folha - Ou de ser controlados pelos administradores.
Toscani - Mas isso é muito grave, eles são colaboracionistas, e ainda por cima se fazem chamar diretores criativos. Nem o Pai eterno se fazia chamar assim. Ele era só criador, não dirigia ninguém, criava sozinho.
Folha - A escolha de Gaza se enquadra na perspectiva de "United Colors". É o lugar de uma diferença que deveria ser aceita. Não é só um lugar pobre...
Toscani - Pobre, mas não miserável, minha impressão é que as pessoas aqui queiram se resgatar, não vejo pessoas que desistiram. Me parece que haverá um futuro.
Folha - Mas é também o símbolo de um dos conflitos mais violentos dos últimos anos. Por um lado o conflito entre o Ocidente e o Islã e, por outro lado, no próprio mundo islâmico, o conflito entre a perspectiva fundamentalista e uma posição de abertura. Para alguns, e talvez para muitos, os palestinos não inspiram simpatia. Até a parte hoje engajada no processo de paz, a parte não fundamentalista, tem um passado terrorista com o qual imagino que nem você simpatize.
Toscani - Não tenho simpatia pelo passado de nenhum povo. Se você olha para o passado, nenhum povo –gregos, romanos, americanos– é simpático. Não precisa olhar para o passado; conhecemos o passado, precisa olhar para o futuro.
Folha - A causa palestina foi em uma época abraçada por muitos progressistas de nossa geração. Aos poucos, me parece que perdeu estas simpatias, por ter alimentado um terror particular, não dirigido contra um inimigo específico. O terrorismo palestino foi uma espécie de inverso da idéia de "United Colors": uma "trade mark" do ódio para com o Ocidente, como se este fosse diferente ao ponto de seus habitantes poderem ser todos vítimas indiscriminadas de qualquer violência.
Toscani - Não acredito nisso. Todas as guerras são guerras civis. O mundo esteve contra a Palestina, por isso a guerra deles era contra o mundo inteiro.

Continua à pág. 6-6

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