São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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Máscaras da escravidão

RICARDO MUSSE
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Olhar Europeu – O Negro na Iconografia Brasileira do Século 19", que será lançado pela Edusp em dezembro, é a transcrição em livro de uma exposição organizada por Boris Kossoy e Maria Luiza Tucci Carneiro por ocasião do centenário da Abolição.
A partir da USP, a exposição correu mundo, numa trajetória que vai de Paris (França) a Cracóvia (Polônia). Este sucesso não se deve, entretanto, apenas à qualidade do material iconográfico selecionado, mas sobretudo ao projeto de desmontar uma construção simbólica: o negro enquanto modelo de representação, assentada num olhar (europeu) moldado por valores etnocentristas.
Convergem, para isso, as competências intelectuais de Kossoy –pesquisador especializado em fotografia e nas relações da iconografia com a história– e de Tucci Carneiro– autora de livros dedicados à questão do racismo.
Foi sobre este trabalho que eles falaram em entrevista à Folha.

Folha - Qual o objetivo da exposição, agora transformada em livro?
Boris Kossoy - Trata-se de uma pesquisa iconográfica e histórica dedicada a compreender a questão dos estereótipos, de como se translada a imagem mental para a imagem iconográfica, e o preconceito aí embutido.
Nosso propósito foi mostrar que existe uma representação do negro –como existe do branco– feita segundo uma visada européia.
Os naturalistas e artistas viajantes chegaram aqui, após a abertura dos portos, com uma visão preconcebida da realidade, a partir de conceitos de séculos anteriores.
Como não há uma representação gráfica do negro por brasileiros, a visão sobre o negro vem de fora, representada esteticamente segundo conceitos europeus.
O importante é desmontar essas imagens –apresentadas dentro do próprio país como ilustrações artísticas de uma realidade brasileira exótica e curiosa– como fontes de disseminação ideológica.
Folha - É possível resgatar, em bases mais neutras, o valor de documento histórico dessas imagens?
Tucci Carneiro - Procuramos recuperar a ambiguidade da imagem. O erro dos livros didáticos deriva do fato de apresentarem ilustrações de Debret, Rugendas etc como documentos históricos, sem levar em conta que elas podem estar falseando a realidade.
A nossa interpretação trabalha com uma dupla possibilidade: a imagem como registro de uma realidade e como interpretação de uma concepção mental que não é diretamente visível.
Kossoy - Para não nos deixarmos levar pela sedução das imagens, trabalhamos com comparações. Nessa mostra, um mesmo tema –o mercado de escravos, por exemplo– é representado de modos diferentes conforme o artista.
Enquanto Rugendas, numa visão romântica, pinta os negros de acordo com o padrão de beleza europeu, disfarçando sob a forma de um acampamento o cenário constrangedor do ato de compra e venda de carne humana, W. Read procura marcar a distância entre o negro e o branco, enfocando-os, de modo explicitamente preconceituoso, como seres animalizados em sua compleição física.
Assim, não há como dissociar ideologia de estética. A estética da representação resulta de uma ordem calcada em valores religiosos, econômicos, sociais, racistas etc.
As imagens podem ser consumidas como fontes de prazer estético, mas elas não são ingênuas, elas carregam em si uma diabólica carga ideológica. É preciso compreender a matriz cultural dos produtores, a história das mentalidades, para fazer uma desmontagem.
Folha - Em traços gerais, qual é a mentalidade que preside esse olhar europeu?
Kossoy - A representação gráfica segue, em linhas gerais, uma leitura preconcebida do Brasil. Trata-se de representar o outro, mas o outro é sempre inferior, não se pode concebê-lo como igual.
Carneiro - São raros os que fazem, por meio da imagem, uma denúncia da escravidão. Apesar da preocupação em registrar e depois em mostrar na Europa os mecanismos desse sistema, prevalece, entre os viajantes, uma espécie de endosso ao regime escravocrata.
Folha - Como se configura esse modelo de representação do negro?
Carneiro - A imagem do Brasil produzida por esses artistas e fotógrafos viajantes deve não só satisfazer os anseios pelo exótico, pelo diferente, mas também confirmar aquela imagem do outro formulada por cronistas desde o século 16.
O traço definidor mais persistente nessas imagens é a presença de uma mentalidade racista secular. Ao ver essas representações do negro, do índio, do mulato, ao confirmar –pela via do estereótipo cultural e étnico– a diferença física, o europeu está ao mesmo tempo reafirmando a sua imagem de homem branco e cristão.
Kossoy - Nosso ensaio aborda os mecanismos de produção e de recepção. Além da questão da mentalidade, há um dado material importante: o surgimento de técnicas de multiplicação das imagens –a litografia e, depois, a fotografia– atende a uma demanda, gerando na Europa um mercado consumidor de imagens, ávido por representações exóticas.
Exibe-se na sala de visitas européia um conjunto de curiosidades visuais sobre a América. Esse novo hábito de colecionar imagens do outro, do diferente, coincide com a voga das doutrinas pseudocientíficas que propagavam a superioridade do homem branco.
Folha - De que forma esse olhar europeu repercute na formação de nossa identidade?
Carneiro - A partir do final do século 19, nossa elite intelectual, de Sílvio Romero a Gilberto Freyre, formula sucessivas teorias do Brasil, nas quais se procura a identidade do homem brasileiro.
A imagem proposta não se assenta no modelo físico do caboclo, do mulato ou do índio, mas na figura do homem branco, representado pelos viajantes. Junto com a importação das idéias européias, vem o modelo do brasileiro ideal.
Esse percurso de construção de uma imagem, durante séculos, culmina, nos anos 30, com o projeto ideológico do Estado Novo, quando, através de campanhas educacionais e da manipulação do Departamento de Imprensa e Propaganda, se impõe, para os brasileiros, uma auto-imagem definida em termos do homem branco.

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