São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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Um marxista do cinema

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS, EM PARIS

A importância de Noël Burch para a crítica de cinema corresponde ao grau de contradição de seu caráter. Basta que seus livros sejam internacionalmente aclamados para que Burch passe a renegá-los em repetidos "autos-de-fé" já típicos de sua personalidade.
Embora ele mesmo se julgue um "lento", dado a abraçar teorias com décadas de atraso, é também, sem dúvida, um descobridor, mas que abomina os modismos. E se os abandona para reassumir posições muitas vezes retrógradas, é com o indisfarçável intuito de causar polêmica.
Muito antes de Gilles Deleuze, Burch sistematizou a relação espaço-tempo e a montagem em "raccords" no cinema, no famoso "Práxis do Cinema", de 1969, livro que se tornou indispensável.
Quando a crítica ocidental ainda não levava a sério os filmes japoneses, ele apontou as técnicas de Ozu, Mizoguchi e outros como a vanguarda precoce do cinema, em "Para o Observador Distante".
Finalmente, quando ainda não se dava importância ao cinema das origens (base das teorias narratológicas hoje em voga), Burch nele viu a possibilidade de uma estética antiburguesa, em "A Lucarna do Infinito", escrito entre 1976 e 1983, mas publicado em 1990.
Atualmente, o escritor e cineasta americano, há décadas radicado na França, rejeita com energia essas três obras precursoras, que acredita estarem excessivamente contaminadas pelo formalismo francês, preferindo voltar-se para a crítica anglo-americana e as análises sociológicas.
Sem se abalar com o presente descrédito das esquerdas, apega-se como nunca aos preceitos marxistas, dispondo-se a reavaliar o cinema americano (outrora objeto fetichizado pela ótica masculina da "nouvelle vague") por uma perspectiva feminista.
Em torno desses princípios gira "Rever Hollywood", livro recém-publicado na França, organizado por Burch. Antes que atirasse também este à fogueira, a Folha o entrevistou em Paris, captando momentos de sua personalidade brilhante e atormentada.

Folha - Houve um longo silêncio entre seus livros "Para o Observador Distante", de 1981, e "A Lucarna do Infinito", publicado em 1990.
Noël Burch - É um silêncio aparente, porque na verdade "A Lucarna do Infinito" foi escrito entre 1976 e 1983. Houve problemas de edição que atrasaram a publicação, período no qual fiz no texto algumas mudanças sem significado especial.
O que se pode chamar de ruptura em meu trabalho ocorreu a partir de 1981, quando abandonei definitivamente minhas posições formalistas. Desde então, produzi só alguns artigos e o volume que acaba de sair, "Rever Hollywood".
A ruptura se produziu, portanto, após "A Lucarna do Infinito" –um livro ainda ligado ao anterior, "Práxis do Cinema", e ao livro japonês, "Para o Observador Distante". Eles compõem um bloco mais ou menos formalista, com um pouco de análise sociológica.
Folha - Em "A Lucarna do Infinito", o senhor propõe uma espécie de síntese das teorias dos anos 60 e 70, normalmente consideradas antagônicas: o estruturalismo, o materialismo dialético, a psicanálise lacaniana e o feminismo de esquerda. O senhor acredita realmente que se possa extrair um método teórico único de tudo isso?
Burch - Estou muito pouco preocupado com questões de método. Sou um "bricoleur". Por outro lado, houve um tempo em que pensávamos que todas essas coisas eram convergentes. Apenas o revisionismo atual rejeita essa idéia.
Nos EUA, que têm hoje os maiores pesquisadores, pensa-se diferente. Por exemplo, Charles Eckert, o maior pesquisador americano dos anos 70, mostrou com clareza, principalmente no texto incluído em "Rever Hollywood", que há uma convergência absolutamente legítima entre psicanálise e estruturalismo, dentro de uma concepção marxista.
Sou marxista há 30 anos, meus trabalhos todos se situam sob a luz de uma concepção marxista do cinema. Isso está no prefácio de "Rever Hollywood". Não aderi da mesma forma ao estruturalismo, e meus livros apelam pouco à psicanálise. Em "A Lucarna do Infinito" há apenas algumas notas provisórias nesse sentido.
Se as feministas americanas negligenciam os conceitos marxistas, é por ignorância ou sectarismo, o que só faz enfraquecer seu trabalho. Admiro o trabalho das feministas americanas, mas tenho consciência de que falta sistematicamente a relação de classes em sua abordagem. Há muitos filmes que elas só compreendem parcialmente porque negligenciam a relação entre as classes.
Hoje são abordagens feministas e marxistas que privilegio em meus textos ainda inéditos, em particular o livro que estou preparando sobre o cinema francês dos anos 40 e 50.
Folha - Em "A Lucarna do Infinito", o senhor não cita escritores como Gaudreault e Jost, que também estão estudando o cinema das origens, a partir dos conceitos de Gérard Genette.
Burch - Escrevi "A Lucarna do Infinito" antes que eles publicassem seus textos. A partir de 1981, desliguei-me desses problemas; assim, não tinha o menor desejo de retomar meus textos para discutir Gaudreault e toda essa gente. No entanto, todas essas idéias são essencialmente minhas, quando as escrevi não havia precedentes.
Não cito ninguém desse pessoal. Aliás, os trabalhos deles me entediam profundamente. Hoje quase não me interesso por nada além do cinema americano e francês, porque são coisas que acredito conhecer bem e às quais tenho acesso.
Nunca tive acesso ao cinema japonês, nunca falei japonês. Tentei abordar o cinema japonês porque considerei na época que o conhecimento da língua não tinha importância. Mas agora abandonei esse tipo de coisas, o cinema japonês deve ficar por conta dos que conhecem a língua, a cultura etc. Com referência ao cinema americano, escrevi um texto a ser publicado sobre os "vermelhos de Hollywood", orientado basicamente para os filmes, e não para os mártires.
Estou escrevendo em conjunto com o pesquisador americano Tom Anderson, que estimo imensamente e que me introduziu nesse assunto. Meu texto se chama "Sexual Politics of Hollywood Communists" (Política Sexual dos Comunistas de Hollywood), que, juntamente com outros dois textos de Anderson, vai ser publicado sob o título "Os Comunistas de Hollywood", numa coleção dirigida por Jean-Louis Leutrat.
Folha - No que se refere à crítica anglo-americana, o senhor faz observações polêmicas, como a de que a crítica francesa se fechou num formalismo acadêmico, ao longo dos anos 70, e o centro de gravidade da reflexão sobre o cinema se transferiu para os Estados Unidos e a Inglaterra. Como reagiram os franceses?
Burch - Ficaram furiosos. Basta ler os "Cahiers du Cinéma". Mas é que a reflexão sobre cinema atualmente na França está morta, não há mais nada. É uma catástrofe. Aliás, a situação intelectual em geral na França é grave hoje. Há todo esse engajamento em torno das questões do Leste europeu, por um lado. Por outro, nunca houve na França movimentos feministas importantes para impor o que quer que seja.
Nos EUA, justamente o que estimulou os trabalhos foi o feminismo e, na Inglaterra, os "estudos culturais", que têm uma importância considerável em tudo isso.
Por razões referentes à configuração cultural e ideológica da paisagem intelectual francesa, não houve uma "refecundação". O que houve, ao contrário, foi uma estagnação, gira-se em círculos. Divaga-se sobre o cinema como arte platônica, com base naturalmente na literatura.
Genette foi um grande autor, mas ele faz esse tipo de coisas com Flaubert também. Na Universidade de Paris 3 é só isso que se faz. Há anos dou aulas lá completamente só, mas os alunos gostam do que ensino. É porque falo do que é real, enquanto os outros...
Um de meus colegas diz aos estudantes, num curso que se chama "Análise de Filmes", que quando se analisa um filme não se deve procurar o sentido! É típico. Os franceses não sabem que o centro de gravidade se deslocou para os anglo-americanos.
Num artigo publicado nos "Cahiers du Cinéma" sobre "Rever Hollywood", um rapaz que não conheço diz estar espantado que em 1994 um teórico do cinema possa escrever (e ele me cita) que o cinema é um objeto social. Para os intelectuais franceses, ou pelo menos parisienses, depois do formalismo nada mais aconteceu. Tudo que venha da interpretação ou de posições contestatórias da linguagem capitalista e patriarcal é ideologia e não se deve fazer.
É uma situação caricatural. Gente como Derrida ou Foucault (adulados, por exemplo, na Inglaterra, por razões frequentemente erradas) ninguém mais lê na França, porque tais autores remetem a debates teóricos com uma filigrana de elementos políticos e ideológicos.

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