São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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O Brasil escravocrata é tema de outros livros

RICARDO MUSSE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Três lançamentos recentes, bastante representativos do que se faz atualmente em história da escravidão no Brasil, investem, sintomaticamente, em novos temas e abordagens.
"Cotidiano e Solidariedade", de Julita Scarano, procura reconstituir, a partir das escassas informações disponíveis, a vida diária de escravos e "homens livres" no século 18 mineiro, enfatizando aspectos até então pouco estudados, como alimentação, moradia, vestuário, saúde e sobrevivência.
"As Marcas da escravidão", de Heloisa Toller Gomes, examina a questão racial –na chave do comparativismo cultural–, tal como se deu nos discursos religioso, político e literário no Brasil e EUA.
Ciente de estar pisando em trilhas pouco batidas e pagando o ônus de uma tese acadêmica, Toller Gomes desperdiça grande parte do livro e do seu talento em justificativas teóricas e reconstituições bibliográficas rigorosamente desnecessárias, deixando a impressão de um trabalho inacabado.
Impressão diferente causa o livro de Maria Helena Machado, "O Plano e o Pânico". A completude e maturidade do projeto, assentado na pesquisa e na descoberta de documentos inéditos, aliados à firmeza de estilo e à maestria da narração, dão a sensação de que se trata de um futuro clássico da historiografia escravagista.
Aparentemente, o livro é apenas mais um dedicado a resgatar, das sombras do esquecimento e do silêncio dos discursos oficiais, vozes discordantes e descontentes.
Para isso contribuem tanto o tema –a resistência dos escravos e os movimentos sociais na década de 1880–, quanto o método –reconstrução factual de episódios eludidos conscientemente de nossos manuais de história.
No entanto, ao procurar situar as rebeliões, executadas ou apenas planejadas, o clima de medo latente num período de desestruturação do sistema escravista, presentes nos autos de processos judiciais e nas comunicações da polícia da época, Maria Helena Machado mapeia não só as tensões sociais nas fazendas, mas também conflitos e soluções aventadas e possíveis para a transição do modelo escravocrata para o trabalho livre.
A luta pela emancipação dos escravos é acompanhada em dois planos: a articulação dos escravos, independentemente de qualquer influência externa, em movimentos orgânicos, e o movimento abolicionista, com suas lutas parlamentares, campanhas jornalísticas, manifestações populares.
O interesse de Helena Machado concentra-se, porém, na confluência desses movimentos, isto é, na penetração de idéias e dos abolicionistas no mundo das fazendas.
Assim, além de matizar a costumeira caracterização urbana do abolicionismo brasileiro, também reavalia o movimento pela incorporação e entrecruzamento de propostas e ações divergentes.
Mais ainda, a análise das confluências e divergências, dos acertos e desacertos entre estes dois planos, é um modelo para a compreensão das relações entre movimentos sociais e a prática política.
A grande lição do livro de Helena Machado talvez resida no fato de nos ensinar –pelo viés do resgate da urdidura entre dois mundos distintos (as insurreições messiânicas, baseada na força congregativa das magias e sociedades secretas, e o discurso formalizado do abolicionismo, centrado em lideranças oriundas em camadas médias mais ou menos liberais)– de que modo ações e vozes descontentes, silenciadas em momentos decisivos pela conciliação entre as elites, influem e pesam no andamento da história.

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