São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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Pecados filosóficos de Hõlderlin

MÁRCIO SUZUKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma vez confrontados com a fecunda produção filosófica de sua geração, os pequenos estudos e rascunhos de Friedrich Hõlderlin (1770-1843) –parte dos quais estão em "Reflexões", lançado pela Relume Dumará– podem passar a impressão de uma certa impotência, como se lhe faltasse capacidade para dar fecho a um projeto tantas vezes idealizado, mas jamais concluído. Estudioso de Kant, admirador de Schiller, discípulo de Fichte, amigo de Hegel, Schelling e Niethammer, contemporâneo de Schlegel e Novalis: em meio a esses nomes ilustres da filosofia de sua época, o aspecto especulativo do pensamento do poeta suábio costuma despertar um interesse episódico.
É, todavia, razoável pensar que a explicação para o aparente fracasso de suas tentativas não seja falta de talento ou algum imponderável fator de ordem pessoal. Uma leitura da correspondência e desses textos inacabados (em sua maioria não destinados à publicação) pode tornar plausível que Hõlderlin, seguindo à risca os ensinamentos da filosofia, tenha sido levado à constatação dos limites e da insuficiência do conhecimento teórico.
Como mostraram recentemente as indicações de um estudioso do idealismo alemão, Hõlderlin sempre se manteve atento àquilo que de mais marcante se produziu no pensamento da época, fazendo suas as exigências que a crítica da razão estabelecera como condição de toda metafísica não-dogmática. É por sua vez na filosofia pós-kantiana, nas soluções que esta encontra para a necessidade imperativa de buscar a unidade absoluta e a impossibilidade de alcançá-la pelo saber, que o poeta colhe idéias que servirão como pontos de referência para sua reflexão.
"Kant é o Moisés de nossa nação, aquele que a conduz da languidez egípcia ao livre e ermo deserto de sua especulação, e traz a lei enérgica da montanha sagrada." Essas palavras podem ser lidas numa carta em que Hõlderlin tenta explicitar o significado da filosofia kantiana a seu irmão Karl, mostrando-lhe que a lei moral não tem apenas um caráter coercitivo, mas que é também o sinal por meio do qual se anuncia a liberdade e a destinação supra-sensível do homem. O próprio autor da "Religião nos Limites da Mera Razão" não diz algo muito diferente disso: "A majestade da lei (tal como a do Sinai) inspira veneração" e um "sentimento do sublime de nossa própria destinação que arrebata mais do que toda beleza."
Nessa mesma carta de 1º de janeiro de 1799, Hõlderlin prossegue com uma caracterização da filosofia em seus dias: "os alemães não podiam experimentar influência mais saudável do que a da nova filosofia, que leva ao extremo a universalidade do interesse e descobre o esforço infinito no coração do homem". Ao exigir o absoluto, esta que "é, como filosofia da época, a única possível" (a referência, aqui, pode ser tanto o antidogmatismo de Fichte quanto de Schelling), descobre também que jamais pode alcançá-lo senão por um "progresso", por um "esforço infinito".
Com essa constatação é possível considerar encerrada a missão do filósofo. Sua tarefa chega ao fim ao apontar um ideal e traçar o caminho para sua realização. Para ter eficácia, aquele "esforço infinito" em busca da meta deve se tornar um impulso real, que Hõlderlin chama, talvez sob a influência de Schiller, de "senso estético" e, posteriormente, de "impulso de formação" ou "impulso artístico" ("Bildungs-" ou "Kunsttrieb"). Aquilo que havia sido profetizado no "monoteísmo da razão e do coração" só pode ser realizado, numa aproximação infinita, por um "politeísmo da imaginação e da arte" (as expressões são, provavelmente, de Schelling).
"A filosofia traz aquele impulso ('Trieb') à consciência, mostra-lhe seu objeto infinito no ideal, e o fortalece e purifica por meio deste. A bela arte expõe para aquele impulso seu objeto infinito numa imagem viva, numa exposição de um mundo superior, e a religião o ensina a pressentir aquele mundo superior e a acreditar nele como uma disposição oculta, como um espírito que quer se desenvolver, justamente ali onde o busca e o quer produzir, isto é, na natureza, no mundo que lhe é próprio e que o cerca." (Carta ao irmão Karl, 4 de junho de 1799).
Filosofia, arte e religião, essas "três sacerdotisas da natureza" são formas complementares irredutíveis do mesmo "esforço infinito". Por mais que se possa perceber aqui a influência de Schelling e Hegel, no entanto, é certo que a partir desse esquema geral Hõlderlin poderá atribuir uma nova função à poesia e dar formulação original a problemas estéticos tais como o dos gêneros, da criação poética e da relação entre antigos e modernos. Já anos antes, em carta a outro ex-aluno do Stift de Tübingen e então professor em Jena, Friedrich Immanuel Niethammmer, afirmava a intenção de escrever "Novas Cartas sobre a Educação Estética do Homem", onde, "a partir da filosofia, chegarei à poesia e à religião".
Como devem ser matéria e forma poética para satisfazer às exigências da nova situação? Essa questão se repete de múltiplas maneiras nos textos "estéticos" de Hõlderlin, sempre em busca de um "meio", um "veículo", uma "receptividade", um "órgão" capaz de acolher e exprimir o ideal infinito traçado pela filosofia. O mesmo problema, que já fora de certo modo antecipado por Fichte ("a bela arte torna o ponto de vista transcendental ponto de vista comum") e que recebe um tratamento sistemático quando Schelling fala da arte como "o único verdadeiro e eterno órganon e, ao mesmo tempo, documento da filosofia", ganha densidade nas análises da tragédia e das diferenças entre a poesia antiga e moderna.
O que importa na tragédia não é tanto a representação da fatalidade de um herói punido por seu crime, mas o próprio destino ("Schicksal"): a destinação do homem, anunciada, como se viu, pela sublimidade mosaica da lei moral kantiana, está intimamente vinculada à capacidade expressiva da arte –vínculo que Hõlderlin explora na dupla acepção da palavra alemã Geschick, ao mesmo tempo habilidade e destino.
Se a especulação levou os contemporâneos ao reconhecimento daquilo que se guardava no fundo da consciência (o "esforço infinito no coração do homem"), o que lhes falta é justamente aquela habilidade e conveniência (também latente na palavra "Geschick"), aquela sobriedade, clareza e presença de espírito que fazem dos gregos modelos insuperáveis na arte da representação. A cidadania política ("bürgerliche Existenz") dos homens –poetas ou filósofos– só pode ser assegurada pela "mechané" (no sentido grego de "máquina teatral", mas também meio, expediente, invenção, artifício) dos antigos.
"Deve, pois, o homem perder em destreza da força e do sentido aquilo que ganha pela abrangência do espírito? Mas uma não é nada sem a outra!" Reencontrar esse difícil equilíbrio entre destino e habilidade, entre natureza e cultura, orgânico e inorgânico ("aórgico"), constitui a tarefa da poesia, que, por lhe ser inteiramente fiel, acaba pecando contra a filosofia: "Creio que no fim todos nós diremos: sagrado Platão, perdoa! pecamos gravemente contra ti" (prefácio da penúltima versão do "Hipérion", na tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho).

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