São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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SOBRE AQUILES (*)

Mas amo e admiro o poeta dos poetas sobretudo por seu Aquiles. Com que singular amor e espírito não penetra e retém e eleva esse caráter. Considere, por exemplo, os velhos varões Agamenão, Ulisses e Nestor, com sua sabedoria e insensatez, o rumoroso Diomedes e Ajax com seu cego furor: compare-os com o genial, o todo-poderoso, o melancolicamente terno filho dos deuses, Aquiles, esse "enfant gaté" da natureza, e como o poeta pôs esse jovem de força leonina, espírito e graça, no meio entre precocidade e rudeza, e encontrará um milagre da arte no caráter de Aquiles. Esse jovem se acha no mais belo contraste com Heitor, homem nobre, fiel e pio, que é tão completamente herói por dever e fina consciência, quanto aquele tudo é por abundante e bela natureza. São tão exatamente opostos, quanto semelhantes, e é por isso tanto mais trágico que no final Aquiles surja como inimigo mortal de Heitor. O amável Patroclo se associa encantadoramente a Aquiles e convém bastante ao insolente.
Também se vê muito bem o quanto Homero estima o herói de seu coração. Muitas vezes se admirou que Homero, embora quisesse cantar a cólera de Aquiles, quase não o tenha feito aparecer. Ele não quis profanar o jovem deus em meio ao alvoroço de Tróia.
Não era lícito que o indivíduo ideal surgisse no dia-a-dia. E, de fato, não poderia tê-lo cantado de modo mais esplêndido e terno do que ao fazê-lo recuar (porque em sua natureza genial o jovem, como um infinito, se sente infinitamente ultrajado por Agamenão, cioso de seu posto), de tal modo que, desde o dia em que o único se ausenta do exército, cada perda dos gregos faz lembrar sua superioridade sobre toda a aparatosa multidão de senhores e servos, e mediante sua ausência ganham tanto mais luz os raros momentos em que o poeta deixa que se mostre diante de nós. Estes são traçados com força extraordinária, e o jovem aparece alternada e sucessivamente, ora plangente e vingativo, inexprimivelmente comovente, ora de forma terrível, até o fim, depois que seu sofrimento e sua ira se elevaram ao máximo, depois que, tendo irrompido assustadoramente, a tempestade se acalma, e o filho dos deuses, diante da morte que ele próprio prevê, se reconcilia com tudo, mesmo com o velho pai, Priamo.
Depois de tudo o que precedeu, essa última cena é celeste.
FRIEDRICH HÕLDERLIN

(*) Os rascunhos de Hõlderlin (como este, o segundo que escreveu sobre Aquiles) tentam propor soluções para problemas pontuais da poética, por exemplo, reformulando a idéia aristotélica de "reconhecimento" ("anagnórisis"), radicalizando o uso das inversões preconizado no "Sublime" de Longino e atribuindo um papel fundamental ao coro trágico, cuja posição na economia dramática o faz imaginar a possibilidade de um "cálculo" poético.
A referência do esboço traduzido acima é, obviamente, a imputação de impiedade que Platão faz à descrição de Aquiles por Homero no Livro 3 da "República" –peça importante no processo de condenação cívica dos poetas. A primeira frase do fragmento é uma clara alusão à ironia socrática contida nas palavras "Amando Homero como eu o amo..." ( República, 391). Hõlderlin também faz remissão à interpretação classicizante que procura ressaltar a unidade de ação na Ilíada justamente através da figura de Aquiles. É isso que se pode ver, por exemplo, no Abbé Batteux: "É Aquiles que reina por toda parte: tudo se faz por meio dele ou em relação a ele. Ele age tanto quando aparece, como quando não aparece no poema." O trecho, escrito em forma epistolar no ano de 1799, pode ser inserido entre as tentativas de Hõlderlin para mostrar, por trás da sobriedade clássica, o caráter oriental ("das Orientalische") da arte grega.
Tradução e nota de Márcio Suzuki

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