São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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A sorte necessária para um aspirante a cientista

LINUS PAULING

Na primavera de 1922 –72 anos atrás–, eu estava completando meu quarto ano no Colégio de Agricultura de Oregon. Em junho de 1922 eu me graduei em engenharia química. Eu havia aprendido um pouco de matemática, física e engenharia.
Além disso, havia adquirido uma quantidade tremenda de informações sobre as propriedades das substâncias, especialmente os compostos inorgânicos, incluindo minerais e ligas. Em 1919 eu me interessara pela teoria da carga elétrica de elétrons, e continuei a ter esperanças de que, com o tempo, as informações empíricas sobre as propriedades das substâncias pudessem ser reunidas numa teoria da estrutura das moléculas.
Eu também havia me candidatado a empregos em várias universidades e havia aceito um cargo no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech). Minha introdução à pesquisa científica começou em setembro de 1922, quando cheguei a Pasadena, e considero que meus estudos prosseguiram por mais cinco anos, até 1927, quando retornei da Europa.
Durante os três anos e meio que passara como pós-graduando, aprendi muita coisa sobre a física moderna, sobre a matemática e sobre a química, especialmente a termodinâmica química (que não me interessava muito) e a estatística mecânica, de que eu gostava muito, e ainda gosto.
Caltech era um lugar notável. Seu primeiro grau de doutorado havia sido conferido em 1920, dois anos apenas antes de minha chegada.
O corpo docente incluía muitos cientistas notáveis nos campos da matemática, física e química, entre eles Roscoe Gilkey Dickinson (um cristalógrafo pioneiro de raios X e primeiro receptor de um grau de doutor do Caltech), Harry Bateman, Paul Epstein, Robert A. Millikan, Arthur Amos Noyes e Richard C. Tolman.
Havia um interesse muito grande por uma técnica chamada espectroscopia de linhas, na velha teoria quântica e em outros aspectos da física moderna.
No departamento de química, chefiado por Noyes, esperava-se dos estudantes de pós-graduação que começassem a fazer pesquisas assim que chegassem a Pasadena, além de fazerem alguns cursos avançados, muitos deles ministrados por Tolman. Eu gostei especialmente do curso de mecânica estatística, dado por Tolman.
Além disso havia um seminário semanal de química, um seminário de física e um seminário realizado ou no campus do Caltech ou no edifício do Observatório Mount Wilson, em Pasadena, pelo clube de física e astronomia.
Todos esses seminários incluíam a apresentação de notáveis descobertas recém-publicadas, como o efeito Compton, a experiência Stern-Gerlach mostrando a orientação de vetores no espaço, ou o spin, o movimento giratório do elétron.
Meu interesse pela cristalografia dos raios X continua até hoje. Além disso eu assistia palestras dadas por físicos visitantes: Sommerfeld, Born (sobre mecânica de matrizes), Ehrenfest, Raman e Charles Galton Darwin.
Embora a maior parte de meus primeiros trabalhos publicados se baseassem em trabalho experimental –a determinação da estrutura de cristais– em pouco tempo comecei a fazer pesquisas teóricas.
Tive sorte várias vezes em minha vida. Um das instâncias mais notáveis de minha boa sorte foi o fato de haver feito meus estudos de pós-graduação no Caltech. Anos mais tarde, depois de conhecer bem várias universidades de alto nível, percebi que não havia lugar algum no mundo, em 1922, que me teria proporcionado melhor preparo para minha carreira de cientista.
Depois de passar três anos e meio em Pasadena, fui enviado à Europa na condição de pesquisador associado do Caltech, num arranjo feito por Noyes. Eu também havia me candidatado a uma bolsa de estudos John Simon Guggenheim Memorial, e pouco depois que minha esposa e eu chegamos a Munique, ficamos sabendo que a bolsa havia sido concedida. Passamos um ano e meio na Europa: um ano em Munique, com Sommerfeld, e estadias mais curtas em Copenhague e Zurique, além de visitas a outros centros de pesquisa em física moderna.
Eu havia sido indicado para um cargo de professor assistente no Caltech, e em setembro de 1927 retornamos a Pasadena.
Meus estudos haviam continuado durante esse período, especialmente durante o ano passado no Instituto de Física Teórica, de Sommerfeld. No momento em que chegamos, em abril de 1926, Schrõdinger havia começado a publicar seus artigos sobre a mecânica de ondas, e Sommerfeld imediatamente começou a dar palestras sobre os artigos.
Vários outros seminários também foram dedicados a artigos recém-publicados sobre mecânica de ondas e outros aspectos da mecânica quântica. Comecei, então, a refletir sobre os assuntos que mais me interessavam, que não era o átomo de hidrogênio ou as moléculas de hidrogênio, e sim a questão da estrutura e das propriedades dos átomos e de moléculas mais complexas.
Meu artigo foi publicado no Zeitschrift für Physik de 1927. Ele envolvia uma interessante combinação da velha teoria quântica e da mecânica de ondas, publicada por Gregor Wentzel no início de 1926. O tratamento envolvia o uso de um modelo atômico desenvolvido em 1920 por Schrõdinger, que sugeria que os átomos e íons contendo muitos elétrons poderiam ser tratados por um modelo idealizado no qual as camadas internas do elétrons fossem substituídas por cargas elétricas na superfície, com um único elétron em órbita penetrando esses revestimentos.
Wentzel utilizou o método de Sommerfeld, da teoria quântica antiga, de quantizar sistemas condicionalmente periódicos. Wentzel havia avaliado constantes dos elementos de um par de raio X por este tratamento teórico, mas seus valores calculados não batiam com os valores experimentais.
Notei que poderia ser efetuada uma extensão do método de Wentzel, que concordava razoavelmente com a experiência. Pelo que sei, essa foi a primeira aplicação da mecânica quântica a átomos e íons contendo muitos elétrons. Continuei, então, a desenvolver esse método e o apliquei ao a diversos conceitos, numa série de artigos publicados em 1927.
O fato de que eu estava no instituto de Sommerfeld no mesmo momento em que Schrõdinger publicou seus artigos sobre mecânica de ondas constitui um segundo exemplo de minha espantosa boa sorte.
Pelo que sei, as palestras de Sommerfeld sobre a mecânica de ondas foram as primeiras dadas sobre o tema em qualquer lugar do mundo. Foi mais ou menos por acaso que cheguei a Munique na primavera de 1926. Na verdade, eu havia pensado seriamente em ir ao instituto de Niels Bohr, em Copenhague, mas as circunstâncias me levaram a mudar de idéia.
Tenho certeza de que se deve em grande medida a essa boa sorte o fato de que obtive uma base bastante boa de mecânica de ondas alguns meses apenas após sua descoberta, e também meu êxito posterior na aplicação da mecânica quântica a algumas questões antes confusas no campo da química, culminando na publicação de meu livro A Natureza da Ligação Química, em 1939.
Houve outros momentos em minha vida em que tive boa sorte, e alguns em que não tive tanta, mas não tenho motivos para me queixar. Retrospectivamente, vejo os cinco anos que se seguiram a setembro de 1922 com muito prazer, e com profunda gratidão pelos notáveis professores que tive.
Reproduzido com a permissão de Nature (vol 371, p.10). Copyright 1994, Macmillan Magazines Ltd
Tradução de Clara Allain

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