São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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Por uma lei anticlichê

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

É preciso vetar, em caráter irrevogável, o uso de 'Carmina Burana' em filmes com padre, em publicidade e especialmente em clipes de
esportes
Já que parece inevitável a reforma da Constituição no principado de Fernando Henrique Cardoso, e já que é impossível controlar o ímpeto dos parlamentares quando o assunto é invenção de regulamentos, gostaria de sugerir algumas medidas para aperfeiçoar nosso catatau constitucional.
São coisas simples, que poderiam, contudo, contribuir para a aliviar o sofrimento de alguns e melhorar a qualidade de vida de outros.
Por exemplo: vetar, em caráter irrevogável, a utilização da peça "Carmina Burana" em filmes com padre, em publicidade e especialmente em clipes exibindo esportes. "Chariots of Fire", evidentemente, passaria a ter sua execução banida como fundo musical de cenas de gente correndo em câmera lenta. O mesmo valeria para o "Bolero" de Ravel –em qualquer hipótese– e para "New York, New York", em festas engravatadas, lançamentos de automóveis importados e noitadas em boates paulistanas.
Em atividades mais elevadas, caso das artes plásticas, seria bem-vindo algum dispositivo constitucional que regulasse o palavrório da crítica empenhada em dar "espessura" a obras "in progress" ou mesmo "matéricas", especialmente no tocante à "problematização" do "suporte". Também seriam definidos critérios mais rigorosos para o aparecimento do fenômeno da "tensão" no terreno da estética.
Com respeito à poesia e literatura, terreno minado, os legisladores compreenderiam muito bem que viveríamos melhor se fossem evitados ataques caudalosos ao grupo concreto, notadamente com o intuito de criar "polêmicas" infindáveis nas quais todos já sabem, há décadas, todos os argumentos de todos e ninguém vai mesmo mudar de posição.
Quanto ao cinema brasileiro, caso venha a ser novamente praticado, o Estado passaria a condicionar o estímulo financeiro a algumas medidas de saneamento estilístico. Nada, por exemplo, de diálogos do tipo "–Eu te amo, porra". Seriam fixadas cotas muito austeras para a aparição em cena de suor nas axilas, lingerie vermelha, costeletas, homens de sapatos brancos, bandinha, confete e Rio de Janeiro. Sobre o histórico desejo dos cineastas de construir alegorias delirantes sobre o Brasil, ficaria restrito ao espaço das cinematecas.
No campo da música popular, também muito delicado, a Carta Magna poderia de alguma forma estimular artistas a imitarem menos a maneira de Caetano Veloso se expressar e mais a qualidade de seu trabalho. Mas num ponto seria preciso energia: compositores e cantores não nascidos na Bahia ficariam impedidos de emitir opiniões na TV com sotaque baiano e franzindo as sobrancelhas.
Claro que o jornalismo não seria excluído da Carta. Mas como no Brasil, em geral, só se legisla em causa própria, deixo as sugestões para os leitores.

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