São Paulo, segunda-feira, 7 de novembro de 1994 |
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Conto de fadas
JOSIAS DE SOUZA BRASÍLIA – Itamar, 63, levou June, 31, ao cinema. Diante das câmeras, respeitoso, apenas repousou a mão sobre o ombro da moça. Finda a sessão, June ao volante, o casal deslizou pelo asfalto de Brasília, dando início a um roteiro água-com-açúcar.Os seguranças observavam à distância. Seguiam atrás, em outro carro. Para onde a princesa estaria conduzindo o seu presidente? Para a casa dela? Mistério. Para o palácio dele? Suspense. Não poderia haver melhor moldura para o ocaso do governo Itamar. Quando assumiu, após alguma hesitação, pensou em renunciar. Agora, o presidente executa lances de marketing que fazem de Collor um amador. O casal mergulhou na Esplanada dos Ministérios. Vão para o Jaburu, imaginaram os repórteres. Qual nada. O carro de June ignorou o portão que dava acesso à residência oficial de Itamar. Mais alguns minutos de dúvida e a dupla cruzou a barreira de soldados que guardava a entrada do Alvorada. Na pele de príncipe, Itamar trancou-se com June no palácio. Reconheça-se uma evolução estilística. Meses atrás, ao tentar lance semelhante, Itamar meteu os pés pelas mãos. Grudou os olhos em pernas e seios na Sapucaí e acabou flagrado pelas lentes dos fotógrafos ao lado de uma vagina nua. Passou de esperto a ingênuo. Passaram-se duas horas. E nada. Mais uma hora e, súbito, o carro de June cortou a penumbra que banhava o quintal do Alvorada. A dupla trazia os cabelos surpreendentemente secos, notou um dos repórteres. Cortês, Itamar acompanhou a jovem até sua casa. Despediu-se com comportados beijinhos nas bochechas. Como presidente, Itamar dispõe de cinema particular, no Alvorada. Poderia requisitar o filme de sua preferência. Qualquer um. Optou pelo burburinho do shopping. Collor, de fato, fez escola. June apresenta-se como a anti-Lilian Ramos. Adventista, seus vestidos encobrem os joelhos. Flagrada na igreja, preocupou-se em esclarecer: as três horas de intimidade no Alvorada foram consumidas com uma inocente sessão de piano. A dois meses do final do seu conto de fadas, Itamar torce para que o país ouça, em inebriado silêncio, os acordes que emanam do Alvorada. Só a realidade conspira contra as massagens de June nos ouvidos de Itamar. Os preços da cesta básica, insensíveis, desembestaram. A inflação, alheia ao romantismo presidencial, começa a apontar para o alto. Texto Anterior: O ser e o nada Próximo Texto: Impunidade Índice |
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