São Paulo, segunda-feira, 7 de novembro de 1994
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O síndico e o presidente

CANDIDO MENDES

Nada mais simpático que os flashes de Fernando Henrique, na descontração da primeira viagem da vitória, entre os quadros impressionistas do Hermitage, ou frente ao realejo de Budapeste (Hungria), ou mirando à distância o trono dos Romanov, em São Petersburgo (Rússia).
Eis-nos diante do intelectual, pela primeira vez na Presidência, entre nós e tão em contraste com os tambores e trombetas de Collor, na anti-retórica da chegada ao poder. Os sucessivos flagrantes europeus têm a variação do sorriso desarmado e da alegria jubilar, que pressentem o bom exercício da razão crítica e a meditação que se espera, diante do triunfo.
Os panos de fundo monumentais da Praça Vermelha ou dos jardins dos czares só sublinham a força objetiva do presidencialismo brasileiro e o que são suas dúvidas e cuidados na ruminação de um pensador. O dito talvez mais importante de FHC, no coração da Hungria, foi o de se ter definido como um tucano de esquerda.
Nas declarações da primeira e soleníssima entrevista coletiva em Brasília, após a boda eleitoral, não encontramos ainda a definição de rumos que permitia aquele momento plenário do vencedor, quase esmagado pelo gigantesco pendão nacional. Atlas a suportar-lhe, enfim, a massa da responsabilidade nacional ou protagonista disperso entre as estrelas da bandeira, na queima galáctica, apenas, do sucesso?
Espera o presidente, eleito agora, o verdadeiro "day after" do jogo de esperanças que foi às urnas. Ganhou de largo a facção do país que não pede muito a FHC, depois do milagre do real. Pode ter até, nesta perspectiva, a tranquilidade de síndico-mor, na gestão à sua frente. Tal como a campanha obedeceu à mão espalmada das rotinas de uma sabedoria internacional, para tratar do pós-inflação e do relance do desenvolvimento.
Na outra banda dos votos que insistiram em Lula estão esses quase 30% do país que pressentiram o 3 de outubro como a tomada de consciência do imperativo do salto à frente e da busca, com a virada de página do "status quo" e de uma verdadeira alternativa ao país que está aí, e sua tolerância com os desníveis de prosperidade.
Não se trata de verificar quando fará água o real, nos diagnósticos antecipados do nosso Plano Cavallo, mas de atentar à nossa diversidade com a Argentina, na paralisação do poder de compra dos salários e na convivência com a recessão econômica a prazo.
Ancoramos aqui o plano em duro perfil da redistribuição da renda. Dispomos, ao mesmo tempo, desse extraordinário e pacífico poder de mobilização social que assegurou a opção pelo PT.
As primeiras e serenas declarações de Lula após o dia 3 mostram o quanto o partido se deu conta de que a sua tarefa é voltar ao espírito das caravanas, e do alerta da sociedade para a trégua do pós-real que, de tão triunfante, permite a FHC prescindir da dramaticidade das medidas dos cem dias. Ou da mais irrestrita lua-de-mel com o poder, para garantir de vez os rumos do tucano de esquerda, de mãos, neste momento, ostensivamente desatadas pelo PFL.
Na entrevista de presidente eleito, aliás, o vencedor já se declarou a favor da manutenção do monopólio da Petrobrás, ainda que, ao mesmo tempo, abriu-se, sem agendas de urgência, à privatização da Vale do Rio Doce. De logo não deixou dúvida de que é contra qualquer redistribuição salarial imediata e a amarra à reforma constitucional.
A vitória do real foi um ponto de chegada ou de partida? No passo à frente é que testaremos o quanto, tal como deixa pressentir a frase de Budapest, o Brasil teria optado entre duas esquerdas, e FHC, que volta, vai pautar seu programa pela crença de que o Brasil, antes de subdesenvolvido, é injusto.
O intelectual, agora no poder, tem o dever histórico de distinguir entre o tático e o programático, e aproveitar agora a vertente de seu impulso como homem e a de que, como o PT, só multiplica a confluência da expectativa profunda do país.
O presidente eleito pressentirá, com sua acuidade, o momento de partida do seu mandato e, por sobre o êxito fácil dos vencedores, a busca, já, de um novo pacto social para a mudança? É inevitável o paralelo com o "New Deal", na saída da depressão de 32, nos Estados Unidos. Há uma instância rooseveltiana no que pode anunciar o novo governo.
Fernando Henrique por sobre a qualidade da moeda restaurada, creditou-se um direito de ousar, que não exerceu em campanha. E pode ter, de parte dos adversários, a chancela para o que quer o país de fundo, após a estrita estabilização econômica nacional.
A proposta agora, corajosa, de um salto ao futuro, supõe no seu comando uma social-democracia fiel ao seu recado histórico. E, a partir daí, a dispor de aliados surpreendentes, para um governo que saiba acordar antes, despertado do sono leve do real.
Aproveite FHC a boa vontade nacional que lhe permite a lua-de-mel pública, depois da simpaticíssima mostra do homem que evidenciam as vinhetas de viagem. Travo perene e aguilhão do intelectual é ser corroído pela culpabilidade do que não fez. O palco é vasto demais para a primeira proeza que aquietou o país, encantado pelo síndico. Mas que vai querer, já, já, o presidente.

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