São Paulo, terça-feira, 8 de novembro de 1994
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China vive hoje sua revolução sexual

DO "WORLD MEDIA"

Devido ao tabu completo imposto sobre a questão sexual há mais de 40 anos pelas autoridades comunistas, o professor Pan Sui Ming teve que se contentar com pesquisas feitas entre seus estudantes. Depois, no início dos anos 80, pôde começar a falar com as pessoas nos jardins públicos, o lugar de encontro preferido dos amantes, antes de poder alargar progressivamente suas pesquisas ao resto da população. Assim passou a se interessar pelas consequências da abertura e das reformas sobre a sexualidade dos chineses.
Pan Sui Ming, 44, é professor de sociologia da Universidade do Povo em Pequim e especialista em sexologia desde 1984. É autor de 11 obras e 134 artigos, além de nove pesquisas de grande escala. Seu último estudo intitula-se "A Revolução Sexual na China".

Pergunta - Em sua última publicação o sr. fala em "revolução sexual na China", essa expressão não é um pouco forte?
Resposta - De jeito nenhum. É uma verdadeira revolução, que se fortaleceu com a política de abertura do começo dos anos 80 e que se precipita depois das grandes reformas de 1992. Os chineses estão saindo de mais de 40 anos de cultura assexuada.
Os maiores excessos nesse domínio aconteceram durante a revolução cultural (1966-1976). Tudo foi feito para abolir o sexo. O uniforme para os homens e as mulheres, a banalização do casamento, a crítica do romantismo e mesmo do sentimento amoroso como emanação do "sentimentalismo burguês". A destruição de todas as obras artísticas, musicais ou literárias que tratam do tema erótico.
No começo dos anos 80, os chineses nem sabiam mais os termos elementares para falar de sua sexualidade. Só tinham restado alguns palavrões, termos vulgares ou enigmáticos. O vocabulário da sexualidade havia sido apagado, banido das conversas e proibido nas escolas. Era uma maneira bem eficaz de manter o tabu do sexo.
O vocabulário da sexualidade foi reaparecendo progressivamente há dez anos. No fim de 1991, listei 216 manuais consagrados à sexualidade e 62% dos estudantes interrogados havia ao menos consultado um.
Pergunta - Essa reabilitação da sexualidade chega a modificar o comportamento?
Resposta - Com certeza, mas não somente por causa do fim do tabu. A melhora das condições de habitação deu de volta aos casais um pouco de intimidade. O controle sobre a vida privada exercido pelas unidades de trabalho diminuiu.
Ter relações sexuais antes do casamento ainda é ilegal e passível de uma multa equivalente a seis anos de salário. Entretanto, quase 82% dos casais que se casaram depois de 1979 reconhecem que tiveram relações sexuais antes do casamento. Mas os chineses continuam muito conservadores e não gostam da idéia de que suas mulheres possam ter tido uma outra relação, ainda que anterior à deles. Por isso as jovens chinesas evitam sempre responder a perguntas sobre a virgindade.
A tolerância também melhorou quanto às relações extra-conjugais. Até a metade dos anos 80 a propaganda contra o adultério ainda era muito forte, apesar de não haver uma lei repressiva nesse domínio. Havia muitos artigos consagrados à "moral", mas agora praticamente desapareceram. Os qualificativos também evoluíram. Há dez anos falávamos em "cometer um adultério", hoje já se diz "ter um amante" –o lado pejorativo diminuiu.
Pergunta - Qual o impacto de todas essas mudanças nas práticas sexuais?
Resposta - Apareceu a noção de "prazer" e são sobretudo as jovens que falam sobre isso. A maioria sabe que precisa de prazer e ousa pedir a seu parceiro. As mulheres casadas que participaram da pesquisa põem o prazer em terceiro lugar nos critérios de um casal. Os homens em quarto lugar. As mulheres têm hoje muito mais iniciativas. Pelo menos 21% dos casais já experimentaram a posição em que a mulher fica por cima e comanda o jogo. Mas começo a ver muito casos de homens impotentes ou vítimas de ejaculação precoce porque não conseguem satisfazer suas mulheres. Em consequência, a masturbação como forma de atingir o prazer é cada dia mais admitida. 86% dos estudantes e 50% das meninas reconhecem se utilizar disso. Mas há ainda tabus: principalmente tudo o que diz respeito ao sexo oral e à sodomia, sobretudo entre os camponeses.
Pergunta - Os chineses levaram bem longe o refinamento amoroso sob as dinastias dos Tang (618-906) e dos Ming (1368-1644). O sr. observa uma volta a essas práticas antigas?
Resposta - A "arte da alcova" desapareceu desde o século 17. A última dinastia imperial, a dos Qing (1644-1911), confinava a sexualidade que se tornou um tipo de ascetismo espiritual no simples objetivo de reprodução. Havia até a idéia de que a ejaculação fazia mal para a saúde. Depois da queda do império em 1911, a idéia do amor romântico foi novamente veiculada por alguns intelectuais vindos do ocidente, mas a sucessão de conflitos e guerras a partir de 1919 e a chegada dos comunistas em 1949 puseram fim a esse pequeno período de abertura.
Hoje, ainda há uma grande página preta sobre essa história antiga e as velhas práticas sexuais foram esquecidas. Apenas alguns intelectuais sabem da existência do "Jing Ping Mei" (o grande clássico sobre as técnicas do amor). A partir de 1992, alguns publicações ilegais do livro começaram a circular, mas ainda não têm impacto.
É sem dúvida por causa desse passado que os ocidentais imaginam que nós temos muito conhecimento no domínio da sexualidade, mas, na verdade, todas as práticas um pouco originais nos vêm dos ocidentais, que algumas vezes tiraram suas idéias dos velhos manuais chineses. É o caso da posição "69", que foi iventada sob os Ming e agora volta para nós via Ocidente.
Pergunta - Essa "revolução sexual" tem causado excessos?
Resposta - Não se pode falar de "desordem sexual" na China, mas de uma perda de referências. Ainda não há muitos cursos sobre a sexualidade e a grande maioria dos chineses copiam suas idéias de vídeos e revistas pronográficas, que são proibidas desde a lei de 1990. Pelo menos 21 pessoas foram condenadas à morte até a metade de 1992 por terem copiado ou difundido vídeos pornográficos, mas mesmo assim circulam aos milhares. Mais de 30% dos estudantes admitem ter visto um.
Mas os chineses não sabem muito bem diferenciar aquilo que é sensual, ou erótico, do que é totalmente pornográfico. Encontro muitas mulheres chocadas porque seus maridos ou amantes as obrigam a assitir filmes pornôs "para aprender" e fazer em seguida a mesma coisa. Atualmente a pornografia chega também no campo. É tarde para educar essa geração.
Pergunta - O liberalismo leva a uma tolerância maior quanto ao homossexualismo?
Resposta - Os chineses são incrivelmente ingênuos quanto a isso. Em nossa cultura, os contatos entre pessoas do mesmo sexo não é proibido e às vezes é muito difícil encontrar o limite entre a simples afeição e a homossexualidade, sobretudo entre as mulheres. Nos dormitórios das escolas e universidades é comum encontrar garotas abraçadas na mesma cama, mas elas não são necessariamente lésbicas. 16,6% dos estudantes homens e 15% das mulheres admitem que já se deixaram tocar por amigos do mesmo sexo, mas somente 8% dos meninos e 10% das meninas dizem ter uma tendência homossexual. O lesbianismo é bastante bem tolerado na cultura chinesa. Essas práticas não são consideradas desestabilizantes para a sociedade.
Mas nesse caso também faltam referências. Os primeiros artigos oficiais sobre a homossexualidade datam de 1991. No último filme de Chen Kaige, "Adeus Minha Concubina", a maioria dos espectadores não entendeu que o tema central era o homossexualismo dos dois atores de ópera. Durante a revolução cultural os homossexuais eram enviados aos campos. Hoje, eles se reúnem nos parques.
Pergunta - Quais são os riscos de desenvolvimento da Aids?
Resposta - São enormes, menos pelo risco de contaminação via sexo, porque os chineses ainda têm um número limitado de parceiros, e mais pela via sanguínea. Os chineses têm muito pouca informação sobre os riscos que correm. Em outubro de 1992, não havia mais de 1.000 casos de Aids declarados na China (a população chinesa é de cerca de 1,3 bilhão), mas pelo menos 100 milhões de casos de hepatite B, que também se transmite por via sanguínea. Imagine o que pode acontecer com a Aids...
Pergunta - Que tipo de proteção e de contracepção os chineses utilizam?
Resposta - Principalmente a esterilização a que as mulheres se vêem obrigadas depois de parir o primeiro filho, por causa da política de controle da natalidade, e o aborto. Algumas estudantes começam agora a procurar pílulas. Os preservativos ainda são muito mal aceitos. Menos de 10% dos chineses usam. Eles acham que pode atingir a imagem de sua virilidade.

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