São Paulo, terça-feira, 8 de novembro de 1994
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Fobia do estupro traz de volta a era vitoriana

KATHIE ROIPHE
ESPECIAL PARA O "WORLD MEDIA"

O sexo. Antigamente era tão simples. Para as mulheres do século 19 só havia dois tipos de homem: aqueles com quem dormiam (seus maridos) e os com quem não dormiam (todos os outros). A família, a igreja e o Estado estavam de acordo em dizer que esta distinção era justa e natural. Deveria durar para sempre.
Mas em uma só geração, a revolução sexual desfez o tecido da repressão sexual. Os diferentes papéis repartidos antes entre os homens e as mulheres deixaram simplesmente de existir. E foi assim que a vida das mulheres se povoou de maridos, amantes e noites sem manhãs, todos colocados no mesmo plano moral.
E então? As mulheres têm nos anos 90 a mesma liberdade sexual? Ou nós vencemos os velhos inimigos para nos vermos sitiadas novamente? Parece que os debates sobre o assédio sexual e o estupro envolvem as mulheres hoje como um incêndio, consumindo o oxigênio de suas aventuras sexuais. O sexo, esse ato mais fundamental que um ser humano pode conhecer, é discutido de uma maneira que não tem nenhum fundamento na vida real.
Nos últimos anos, as americanas falaram sobre acusações de estupro contra William Kennedy Smith, um membro de nossa família real. E com ainda mais paixão seguimos o caso de Clarence Thomas, nomeado juiz da Corte Suprema, mas cuja confirmação do posto se viu ameaçada por acusações de assédio sexual.
Na época da confirmação de Clarence Thomas, a mídia anunciou uma tomada de consciência nova entre as americanas. Mas para as estudantes, o problema do assédio sexual era já muito conhecido. Suas caixas de correio estão lotadas de panfletos como um que recebi, intitulado: "Aqueles que estupram suas amigas - Isto poderia acontecer com você?". As garotas lêem nas páginas dos jornais feministas artigos sobre "date rape", o estupro cometido por uma pessoa conhecida, com quem se marcou um encontro. Serviços sociais existem em todas as universidades americanas para aconselhar as estudantes sobre o problema e aumentar a precaução.
Não se pode mais considerar a liberdade sexual como um presente simples e bom do passado. É uma herança dupla, com uma parte de intriga e outra de confusão. As feministas são as responsáveis por esta maneira de ver o sexo. Elas sustentam que uma conscientização sobre o estupro e o assédio sexual aumenta a verdadeira liberdade das mulheres, e não o contrário. Em princípio é fácil concordar com essas feministas: o estupro e o assédio sexual não são invenções recentes. Mas a partir desse ponto pacífico as coisas se complicam.
Um livro, "Evitar o Estupro, na Universidade e Fora Dela", de Carol Pritchard, aconselha as jovens a "pensar duas vezes antes de entrar no apartamento ou no quarto de um amigo. (...) Não se deve correr riscos inúteis." Um outro panfleto muito difundido dá o seguinte conselho às estudantes: "Você não pode saber quem tem a possibilidade de se tornar um estuprador. Então é preciso ficar na defensiva com todos os homens." Um outro panfleto diz o seguinte: "Acontece de homens gentis estuprarem garotas gentis."
Conselhos como esses fazem as mulheres acreditarem que devem suspeitar de todos seus amigos –porque os homens só querem uma coisa. Propagam uma visão do mundo em que o perigo obscurece a sexualidade e onde o que se passa na privacidade de uma garota e um jovem se tornou um "risco inútil". Conselhos como esses sugerem implicitamente que as mulheres não têm desejo, que não passam de criaturas frágeis. Havíamos feito tantos progressos e parece que hoje regredimos.
Os panfletos sobre estupro se parecem cada vez mais aos manuais de bem-viver da era vitoriana. O do American College Health Association aconselha as delicadas leitoras a "replicar em seguida e com firmeza toda vez que um homem comece a ofuscá-las". Da mesma maneira, "O Amigo da Jovem", um guia de boas maneiras publicado em 1857, traz esta passagem: "Nunca consinta participar de jogos que possam levá-la a ser beijada ou tocada de qualquer maneira que seja por um homem. Não permita que peguem na sua mão, ao contrário, mostre que isso a incomoda retirando-a imediatamente."
A definição de estupro que prevalece hoje no meio universitário americano ultrapassa o quadro da violência ou da força física. Hoje em dia, a simples pressão verbal pode constituir um estupro. Um texto de 1848 deixa prevenida a jovem contra o perigo do homem eloquente: "Quanto mais bela for sua aparência, mais perigoso ele será para uma jovem inexperiente, porque mais facilmente poderá envolvê-la e confundi-la. Ele pode mudar sua maneira de ver as coisas e perturbar seu julgamento."
Tudo isso não passa do sexismo da velha guarda. Mas hoje em dia, psicólogas feministas respeitadas utilizam as mesmas frases para definir a coerção verbal. E tentando proteger as mulheres, elas só fazem privilegiar uma imagem segundo a qual a mulher é uma criatura fraca, sem força de vontade, e cuja virtude está o tempo todo à mercê dos homens de conversa fiada. Isso pressupõe que os homens são mais fortes que as mulheres não só no plano físico, mas também intelectual e emocional. Continuamos no velho e bom sexismo.
Os europeus acreditam que a obsessão pelo assédio sexual é tão americana quanto o baseball, a Disneylândia e Elvis Presley. Eles vêem um nossas preocupações um sinal de falta de maturidade. No que me diz respeito, só posso estar de acordo com a antiga ministra francesa Véronique Neiertz, que se espantou ao ver que nos EUA "mesmo a piscadela mais inocente pode ser mal-interpretada". Seu conselho cheio de bom senso às mulheres vítimas de assédio sexual é de revidar com "um belo tapa".
Com muita frequência, estupro e assédio sexual tornaram-se termos utilizados para expressar qualquer tipo de comportamento que desagrade. As estudantes começam a dizer que "o assédio sexual é um tipo de estupro". Seguindo esta lógica até o fim, algumas feministas apagam completamente a diferença entre estupro e sexo. "Compare os depoimentos das vítimas depois do estupro e as descrições das mulheres depois de fazer amor", escreve a jurista Catherine MacKinnon. "Encontra-se aí uma grande similaridade." Esse tipo de reflexão se opõe a toda forma de liberdade sexual.
As mulheres têm direito às mesmas liberdades que os homens. Devemos trabalhar para impedir o estupro e o assédio, mas não aceitar essa imagem da mulher passiva, com a vontade tão fácil de ser mudada. Não somos esta mulher no chão. E sabemos o que queremos.

KATIE ROIPHE é doutora em literatura inglesa pela Universidade de Princeton e autora de "The Morning After: Sex, Fear and Feminism on Campus" (Little Brown, 1993)

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