São Paulo, terça-feira, 8 de novembro de 1994
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A cultura no gineceu

MARIO VARGAS LLOSA
ESPECIAL PARA O "WORLD MEDIA"

Desde que comecei a ensinar literatura e ao longo de três décadas, em diferentes universidades e países, tenho verificado uma regra sem exceção: à medida que o número de saias à minha frente aumenta, diminui o de calças (por assim dizer). Quer se trate de palestras eventuais ou aulas regulares, se o tema é literário o número de ouvintes e alunos homens tende a diminuir e o de mulheres a aumentar, de maneira sistemática e, nos últimos anos, avassaladora.
Ao mesmo tempo, desde que observei a tendência universal das mulheres a se aproximarem da literatura e a dos homens a abandoná-la nos estudos universitários, tenho levado a cabo uma pesquisa rudimentar e pessoal em todas as livrarias que visito (e que são muitas, pois, como sabem todos os que compartilham comigo esse vício, percorrer livrarias, bisbilhotar em estantes, folhear volumes, é um prazer autônomo e não menos intenso que o de comprar livros ou o de lê-los): a proporção entre mulheres e homens, no que diz respeito a adquirir romances, poemas, dramas e ensaios, é de pelo menos dez a um a favor das primeiras. Se a literatura ainda é publicada e vendida, isso se deve às leitoras; pois os leitores se encolhem, em todos os países.
Há poucos dias descobri que essas realidades transbordam os limites do literário e que, na realidade, abarcam todas as ciências humanas, pelo menos nas universidades dos Estados Unidos, em que a porcentagem de estudantes mulheres supera de longe a de homens. É só nas chamadas ciências sociais que ainda se pode falar em um relativo equilíbrio, mas nas disciplinas artísticas e literárias (incluídas nestas o estudo de línguas e civilizações estrangeiras), a presença feminina é avassaladora e quase apaga a masculina.
Direi, de passagem, que quem me revelou esta estatística, uma advogada e feminista de grande prestígio em Washington, não se gabava absolutamente dela. Ao contrário, ela esgrimia essas cifras como uma inequívoca indicação da discriminação de que ainda é vítima a mulher, à qual, como me explicou, se abrem as portas do imprático, enquanto os homens continuam monopolizando o que realmente interessa (o dinheiro e o poder): as ciências, a técnica e a economia.
São conhecidas as razões aventadas para explicar a crescente inclinação das mulheres às artes e às letras e o progressivo retraimento dos homens destes afazeres. Aquelas podem perder seu tempo em atividades de pouco ou nenhum rendimento material porque vivem protegidas por pais ou maridos. Enquanto que estes, pressionados pela necessidade de ganharem a vida num mercado de trabalho altamente competitivo e que em toda parte tende a se reduzir, se vêem naturalmente arrastados para as profissões e ocupações mais procuradas e produtivas.
Pelas mesmas razões, elas leriam literatura e eles não. Isso me foi explicado com muita clareza por um homem de negócios que conheci nas montanhas nevadas da Virgínia Ocidental: "Eu trabalho muito e não posso me dar ao luxo de ler romances; quem se encarrega disso é minha mulher, que não faz nada." Desconfio que essa explicação não seja tão válida quanto talvez tenha sido no passado, porque a verdade é que a vida contemporânea destruiu aquela divisão de trabalho da família tradicional das classes médias e inclusive altas, nas quais, agora, quase sem exceção, marido e mulher precisam contribuir com seus salários para a manutenção do orçamento doméstico e, portanto, renunciar os dois ao ócio.
E isto vale para os países pobres, médios ou ricos. Mas não é minha intenção discutir os motivos dessa propensão universal que parece hoje colocar nos ombros delicados das mulheres a responsabilidade pela sobrevivência das ciências humanas, e sim fantasiar sobre as consequências que isso terá para a cultura do futuro.
Àqueles que perguntam se, ao colocar o assunto desta maneira, estou identificando cultura com ciências humanas, responderei rapidamente que sim. Por isso mesmo, excluo desse domínio toda a técnica e, em geral, todo saber especializado e prático que, muito frequentemente, produz profissionais de alto nível. Profissionais que, ao mesmo tempo, são perigosamente incultos: essa espécie é, sem dúvida, a mais representativa de nossa época e civilização.
A cultura não é mero conhecimento, e sim conhecimento qualitativo. Um saber que, além de ser informação, repercute sobre a sensibilidade, a imaginação, a moral e, em suma, sobre todo o contexto vital de uma pessoa. A religião foi o alimento primordial da cultura durante boa parte da história; depois disso, o têm sido as artes e as letras, sem as quais, na época moderna, pode-se ser informado e produtivo, mas não culto.
Se a cultura do futuro, como tudo parece indicar, há de ser preferencialmente feminina, porque será feita sobretudo por e para as mulheres, ela tenderá a refletir a experiência humana cada vez mais dessa perspectiva, assim como até agora a tem descrito, inventado e soado quase exclusivamente a chamada idiossincrasia fálica. Isso implica numa revolução iconoclasta, sem dúvida. Uma verdadeira reordenação dos valores, mitos, imagens, desejos e fantasmas configurados nas ficções e nas filosofias, nas artes plásticas e na história, desde a condição masculina e que irão sendo progressivamente substituídos por outros, radicalmente diferentes, fecundados por isso que no século passado se chamava de "o eterno feminino", essa fugidia natureza feita de sonhos e de espírito pragmático que sempre intrigou, amedrontou e excitou o homem ocidental.
Será essa cultura mais ou menos propícia à intolerância e à violência, mais aberta à coexistência com o alheio, mais conformista ou mais rebelde, mais livre ou mais generosa ou mais mesquinha do que a temos conhecido? Evidentemente não temos como sabê-lo. A única coisa certa é que será diferente, porque seu protagonista terá mudado e agora vestirá saias. E porque, embora muitos homens ainda participem dela e contribuam para produzi-la e consumi-la, eles serão, com respeito a ela, apenas beneficiários em lugar de criadores e gestores, atores sempre secundários numa representação espiritual que terá dado um sentido novo e talvez mais justo e geral a essa mitologia sempre presente, emblemática da condição humana: a bela e a fera.

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