São Paulo, terça-feira, 8 de novembro de 1994
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'Fraternidade' é obra-prima dos anos 90

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Eu saí do cinema parecia que o filme continuava na rua! O filme é genial, parecia que eu boiava na luz do filme!..." (Eu falava com o cineasta Carlos Diegues ao telefone, depois de ver "A Fraternidade é Vermelha", de Kieslowski).
"O filme continuou ali no Largo do Arouche, só que com umas pontas de realismo brasileiro, pois uma mendiga louca deu de gritar na rua que 'só ela é que fazia a faxina, sempre ela, a faxina!' –em que hospício, em que horrendas privadas foi enlouquecendo a pobre mulher?–, ela poderia estar no filme, apesar de 'A Fraternidade é Vermelha' se passar em Genebra".
"O filme é genial, Cacá, finalmente me sinto diante de um pensador no cinema, como foi Antonioni ou Godard, só que um pensador generoso. O filme podia virar literatura, filosofia, ser transcrito para uma forma reflexiva maior, ele escreve com imagens, a câmera dele é uma 'câmera-caneta' mais moderna, que não precisa de exibicionismos estruturalistas!"
"Este filme é a primeira obra-prima dos anos 90", me diz Cacá Diegues do outro lado da linha. "Pois é... (me estendo, pois ele estava pagando o interurbano...), ele coloca as personagens numa solidão embaraçada em milhões de fios de comunicações possíveis e nós vamos vendo que eles não estão sós; apenas estão sem contacto. Eu saí do cinema com uma esperança danada... parecia um filme dos anos 60, a magia em volta dos atores, as ruas de Genebra, a beleza dos gestos civilizados, um amor pelas pessoas e esquinas, não há aquela coisa desossada do desespero de Wim Wenders, a melancolia pós-pós, a science-fiction deprimida..."
"Kiewslowski trabalha um humanismo de origem cristã numa direção laica e social; este filme é bem mais que um filme de amor!", me define Cacá Diegues.
"É um filme que fala da coisa mais importante hoje em dia (ou que talvez seja a única que nos resta), que é a 'compaixão'. E não falo da coisa babaca de 'pena' dos outros não; falo da origem da palavra latina, 'compassione', ou seja, sentir-se solidário à dor do outro, co-participar da vida
social e da solidão do homem. Kieslowski chega e nos diz neste filme: estamos todos nesta, não adianta apontar o dedo e descobrir culpados!" (Senti que Cacá estava "de veia" e ele foi abrindo o filme para mim).
"O negócio é o seguinte", continuou, "os humanismos tradicionais sempre foram muito triunfalistas. Havia nos sonhos de 'fim', de alvo, de um 'telos' para a humanidade, um desejo no fundo homogeneizante que não passava de um disfarce para o totalitarismo. Podia ser o totalitarismo político ou mesmo o infernal totalitarismo de um paraíso deísta. Os homens hoje sabem que não haverá mais uma humanidade inteira de mãos dadas na Praça Vermelha ou cantando ave-marias no Vaticano. Esta tal de coletivização harmônica era um disfarce para o 'uno"'.
(Eu queria falar também sobre a relação entre idealismo em filosofia e narcisismo, como as duas pontas se unem, mas fui ouvindo o Cacá falar. A voz tinha tons de Glauber falando. Uns quatro ou cinco "anciens combatents" do cinema novo fazemos uma secreta homenagem a Glauber, imitando o jeito abaianado e profético de falar, quando o assunto é intenso).
"Já a 'compaixão' nos une a todos diante da morte, diante da imperfeição da vida social, e será a única via para um novo humanismo, mais humilde, não triunfalista". Eu pensei que a melhor coisa que aconteceu ao pensamento ocidental foi a desilusão da plenitude. Primeiro ficamos raivosos, niilistass, (o niilismo é o outro lado da utopia), isto desde os absurdistas. Depois fomos ficando cínicos, chegando aos pós-modernos, com suas tintas berrantes de um desencanto idiota e gelado, sua negação de nariz furado de qualquer fraternidade.
A arte dos anos pós-pós só "acusa", aponta o dedo em volta denunciando não se sabe bem o quê nem a quem, de um crime que alguém cometeu. Quem? São todos viúvas da harmonia. No fundo tudo uma babaquice, pois afinal estava oculto o desejo de uma "moleza" final, um paraíso sobre a terra, um "sentido" e outras bobagens finalistas. Súbito, eu calei meus pensamentos, porque o Cacá falou em "iluminação pentecostal" de Kieslowski.
"Que é isso?", perguntei...
"A luz dos filmes dos anos 80 era a da fotografia 'hard edge', um exibicionismo americano de perfeição tecnológica, holofotes do presente perfeito. A luz de Kieslowski é pentecostal...
"Claro...", concordo meio deprimido, sem entender...
"Pentecostal no sentido de que a luz entra na ação do filme como pequenos flashes de
revelação, como epifanias explodindo. Este filme é sobre a descoberta da compaixão e a própria fotografia parece vinda do céu, a luz invade a cena como, depois da ressurreição de Cristo, o Espírito Santo vem do céu entre chamas e ilustra os apóstolos que ficam cultos e sábios". (Será a missão da arte hoje no mundo a de propagar uma fraternidade e parar com o mictório pós-moderno amarelo-limão? A "Fraternidade é Vermelha" é um indício desta possibilidade.
Longinquamente começo a ter vontade de filmar de novo). "Há no filme uma cena extraordinária", continua Cacá, pagando o interurbano. "É quando Irene Jacob desfila numa passarela da moda debaixo de milhares de flashes que vão virando mil sóis
milagrosos..."
(Eu me lembrei que um crítico falara em Albert Camus a propósito deste filme. Não acho. A coisa revoltada e solitária de Camus não é o mesmo clima. Aqui há comunhão ou desejo disto, aqui há não o mundo contemplado com desespero, mas como parcialidade possível, dialógica, comunitária, como Habermas pensa no campo da filosofia.
Godard dizia –ou teria sido Bazin?– que "há cineastas que acreditam na imagem e cineastas que acreditam na realidade". Kieslowski acredita nas duas, que juntas formam uma realidade paralela na rua onde flutuo depois que o filme acaba. Esta magia é a "promessa de vida no teu coração", como cantaria Tom).
"Este filme talvez seja um toque de que a arte esteja entrando numa nova fase, depois da ressaca cínica do fim das ideologias modernas", diz Cacá.
"Acho que vou ver de novo", digo. "Tem outra coisa genial no filme: as pernas de Irene Jacob." "É demais". "Boa pra cacete..."

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