São Paulo, terça-feira, 8 de novembro de 1994
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O outro cabresto

José Serra
Durante a Primeira República, foi celebrizada a imagem de "eleitores de cabresto", praticamente arrastados até as seções eleitorais e constrangidos a votar nos candidatos indicados pelos chefes políticos locais, apelidados de "coronéis".
Hoje, com o voto secreto, as cédulas oficiais, a urbanização da maioria do eleitorado e as campanhas gratuitas nas emissoras de rádio e televisão, a possibilidade de forçar um eleitor a votar neste ou naquele candidato diminuiu bastante. Sobrevive apenas em regiões mais atrasadas, onde a informação jornalística mal chega e as liberdades individuais ainda não são efetivamente garantidas.
Em contrapartida, persiste a obrigação de comparecer às seções eleitorais e depositar a cédula na urna.
O eleitor que não a cumpre fica sujeito às penalidades da lei, a não ser que justifique a ausência.
Assim, o Brasil se inscreve entre os países que tratam o voto como um dever e não como um direito.
Os defensores dessa regra constitucional argumentam que, se o voto fosse facultativo, a maioria dos brasileiros adultos poderia simplesmente deixar de votar, enfraquecendo a democracia.
Não foi o que apurou pesquisa realizada por Toledo & Associados poucos dias depois da última eleição.
Dos eleitores entrevistados, 62% declararam que teriam votado mesmo que o voto não fosse obrigatório.
Que valor tem para a democracia um voto dado de má vontade e de forma irrefletida?
Além disso, o eleitor contrariado pode comparecer a sua seção, mas votar em branco ou anular deliberadamente o voto.
Considere-se, por exemplo, o resultado da eleição presidencial do último dia 3 de outubro. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral, dos 94.782.410 eleitores registrados, 17,7% não compareceram para votar, 9,2% votaram em branco e 9,5% anularam o voto, voluntariamente ou não.
Ou seja, 37% dos eleitores não participaram efetivamente da escolha do novo presidente –um número, aliás, idêntico à proporção de eleitores que, na pesquisa acima, declararam que não teriam votado, se o voto fosse facultativo.
Para consolidar a democracia e favorecer a educação política dos eleitores brasileiros, o voto facultativo é mais indicado e deve ser incluído entre as reformas democratizadoras de que nossa Constituição está carecendo.
Tornando-se facultativo o exercício do direito de votar, o voto tende a ser mais valorizado e mais responsável. A tarefa do poder público é estimular o voto, e não orçar que seja dado de má vontade.
É claro que o voto facultativo não é nenhuma panacéia. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde hoje estão sendo realizadas eleições parlamentares, o voto não é obrigatório e cerca de metade do eleitorado potencial não tem participado dos últimos pleitos.
É preciso, portanto, combinar o voto livre com outras medidas legais e práticas para que a participação dos cidadãos seja estimulada.
Não cansa repetir que ninguém pode ser livre se não quiser e se não descobrir o valor da liberdade e da participação. A democracia não pode ser imposta, nem doada paternalmente. Tem de ser conquistada e valorizada.

José Serra escreve às terças-feiras nesta coluna.

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