São Paulo, terça-feira, 8 de novembro de 1994
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A campanha de Lula, o PT e o desafio do real

EDUARDO MATTARAZZO SUPLICY; PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

O PT concedeu de modo prematuro ao adversário o mérito de conseguir a estabilidade econômica
EDUARDO MATARAZZO SUPLICY e PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
A campanha de Lula e da Frente Brasil Popular em 1994 foi inovadora e resultou em crescimento relativo para o candidato e os partidos da frente. Dentre os aspectos positivos da campanha, destacam-se as caravanas da cidadania, a participação de setores os mais diversos na elaboração do programa de governo e o diálogo com todos os segmentos da sociedade.
Graças a isso, Lula conseguiu aumentar a sua votação em 16% do total dos votos no primeiro turno de 1989 para 22% em 1994, a despeito do extraordinário conjunto de forças que apoiaram o principal adversário.
Os partidos da frente obtiveram, por sua vez, crescimento expressivo de sua representação parlamentar. Esses resultados foram alcançados em condições relativamente adversas, em termos de acesso a recursos financeiros e aos meios de comunicação.
Evidentemente, essas considerações não nos impedem de reconhecer que os resultados ficaram abaixo do esperado. Afinal, em maio e junho Lula liderava as pesquisas com margem suficiente para vencer já no primeiro turno.
As razões fundamentais da reversão do quadro eleitoral foram, como se sabe, a introdução do real –cercada de propaganda maciça– e a dificuldade do PT de fazer face ao desafio que o "plano" veio a representar.
O desafio era inegavelmente muito grande. Mas foram cometidos equívocos graves de avaliação no campo econômico que deixaram o candidato desarmado para enfrentá-lo. É preciso agora refletir para que o partido prepare-se melhor para embates futuros.
O primeiro equívoco foi subestimar o adversário. Não se acreditava que o governo Itamar fosse capaz de produzir uma reversão do quadro econômico no tempo que lhe restava, percepção esta que se via reforçada pela forte aceleração inflacionária desde o início da gestão de Fernando Henrique na Fazenda.
Quando da introdução da URV, influentes economistas do PT previram o colapso do plano no curto prazo, contribuindo para que o partido demorasse a perceber o perigo que corria.
Verificado o equívoco dessas previsões, alguns passaram a duvidar de que a introdução do real pudesse traduzir-se em diminuição acentuada das taxas de inflação, ignorando a capacidade do governo, já demonstrada várias vezes, de manter a inflação em níveis reduzidos por alguns meses, por meio de medidas de desindexação e estabilização de preços fundamentais, tais como câmbio, tarifas públicas e salários.
Outros economistas sustentavam que a queda da inflação viria junto com uma recessão profunda, diagnóstico que contrariava toda a experiência em matéria de estabilização em condições de inflação alta e os vários argumentos –redução drástica do imposto inflacionário, reativação do crédito, entre outros– pelos quais se deveria esperar, ao contrário, que o programa tivesse um impacto expansivo, pelo menos nos meses iniciais e politicamente decisivos.
Mas o equívoco básico do partido e da maioria de seus economistas foi não ter percebido a tempo a enorme importância que a população, especialmente os mais pobres e mais sujeitos ao imposto inflacionário, atribuía à estabilidade, permitindo assim que a questão fosse relegada a segundo plano na campanha e no programa de governo.
A segurança que caracterizava as observações críticas de Lula sobre os problemas sociais e políticos não chegou a ser acompanhada de proposições claras sobre o que fazer no campo da economia, em especial no combate à inflação.
Em maio, Lula ainda pediu que se preparasse uma proposta compatível com o desenvolvimento e a distribuição da renda, com o intuito de apresentá-la antes da introdução da nova moeda.
Nessa ocasião, junto com João Machado, Luiz Carlos Merege, Odilon Guedes, André Urani e outros, elaboramos um documento que desenvolvia um plano centrado na mudança dos regimes fiscal e monetário, em medidas de desindexação e de reforma institucional no mercado de trabalho.
No nosso entender, o que poderia ter distinguido Lula mais claramente de Fernando Henrique teria sido a apresentação de um programa que combinasse uma preocupação tão forte com a estabilização quanto com as questões de distribuição da renda e do combate à miséria. Propúnhamos que a política antiinflacionária fosse acompanhada, entre outros elementos, da introdução gradual do programa de renda mínima.
As divergências, normais entre economistas, acabaram deixando de ser arbitradas pela coordenação e por Lula. Os responsáveis pela direção da campanha decidiram dedicar menos tempo ao debate da questão econômica do que à denúncia do caráter conservador das alianças de Fernando Henrique.
Quando veio o real, a desorientação do discurso econômico do partido ficou mais evidente. Parte da assessoria econômica do PT agarrava-se à esperança de que os trabalhadores "cairiam na real" quando abrissem o primeiro holerite no início de agosto.
Ataques pouco criteriosos ao programa econômico do governo terminavam por consolidar a impressão de que Lula e o PT não percebiam a importância da estabilização, facilitando a imputação da pecha de "candidato da inflação" e a propagação da versão de que Lula "acabaria com o real".
Economistas do partido insistiam na idéia de que o plano provocaria recessão e "arrocho" salarial, mesmo depois que começaram a surgir evidências de expansão do consumo e do crédito.
Paradoxalmente, esse diagnóstico não impedia que se denunciasse, ao mesmo tempo, o caráter eleitoreiro do programa. Mas se o Plano Real resultava de fato em redução de salários e recessão, como poderiam seus autores dele tirar proveito eleitoral?
Diante do fulminante impacto político do real, a campanha Lula caiu em alguns momentos no extremo oposto. Na ânsia de não se indispor com o eleitorado, passou a uma posição defensiva, reconhecendo de forma tardia e pouco convincente a importância da estabilidade. Ao fazê-lo, incorreu em equívocos de outro tipo, referindo-se ao real de forma a sugerir que a estabilidade já havia sido alcançada de forma duradoura.
Por exemplo, a utilização do mote "moeda forte sim; salário fraco não", parecia conceder prematuramente ao adversário o mérito de ter assegurado a estabilidade, mérito que o próprio governo hesitava em reivindicar.
Apesar de todos esses enganos, o PT está saindo da batalha com reservas de energia e capital político para exercer papel de vigilância crítica e apresentar alternativas para a resolução dos problemas do país.
Para tal, será preciso, contudo, um esforço de reflexão mais aprofundado sobre os grandes desafios com que se defronta a economia brasileira. Sem isso, o partido não conseguirá intervir de forma construtiva em favor de proposições que venham fundamentar a ainda precária estabilidade da economia e proporcionar crescimento com melhor distribuição da renda.

EDUARDO MATARAZZO SUPLICY, 53, é senador pelo PT de São Paulo, doutor em Economia pela Universidade Estadual de Michigan (EUA) e professor da Fundação Getúlio Vargas (SP).

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR., 39, economista, é professor e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (SP). Foi secretário especial de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento e assessor para Assuntos da Dívida Externa do Ministério da Fazenda (governo Sarney).

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