São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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Morte: um rascunho

HAROLD BRODKEY

Em Nova York, quando alguém fazia uma proposta sexual, dizer 'não' era atestado de amadorismo –só os bobos diziam 'não'
A representação americana d'O Bom de Cama (aquela experiência que todos julgam merecer) sempre enfatizava o que havia de infantil nestas figuras, o fracasso delas no mundo –órfãos belos e derrotados, que dependiam de estrelas de cinema decadentes, ou de Ana Magnani no papel de uma comerciante rica do interior, ou na profundeza da feminilidade de Kim Novak; estes órfãos sensuais, sem um tostão, esses personagens com algo de Jesus Cristo, porém dotados de falos, eram por definição desprovidos de poder no mundo. Para Brando era difícil representar Napoleão, Marco Antônio ou qualquer outro tipo que não o do mártir fálico. E os escritores de sucesso, em particular o sofrido Tennessee Williams, e os diretores de sucesso, enlouquecidos pelo poder, jamais conseguiam disfarçar o desprezo que lhes inspiravam estes homens fracassados e fracos. A versão de Billy Wilder, "Sunset Boulevard" (Crepúsculo dos Deuses), é a mais desdenhosa de todas.
Não conheço nenhuma versão deste tipo de macho irresistível na literatura britânica moderna, com exceção de Basil Seal, personagem dos livros de Evelyn Waugh, e este é um assassino no fundo. Lermontov, Stendhal e Pushkin são mais bondosos, porém também são cruéis. Algumas das versões mais antigas, como José e Davi na Bíblia, são tratadas com menos desprezo, mas por outro lado aparecem em pleno gozo do poder mundano, do sucesso; são homens abençoados por Deus.
Em sua versão americana, este macho é sempre um bobo. E por que não? No meu caso, era mesmo uma bobagem, algo em que nem dava para acreditar senão como uma história sentimental, semelhante às narrativas referentes a minha adoção. É extraordinariamente constrangedor dizer que fui adotado ilegalmente e com muita dificuldade, e a dificuldade foi aceita porque a criança, a criancinha ainda bem pequena –as narrativas concordam neste ponto, ainda que as fotografias não o façam– era de uma beleza excepcional.
A suposta beleza de uma criancinha catatônica, como "mito" público de uma cidadezinha, entre os judeus, é ponto de partida para um drama de infância –a criança irresistível, sua beleza, sua ossatura, seu rostinho. Desde a infância, durante toda a minha vida corri o risco de ser devorado: Dá vontade de comer você todinho.
Pode parecer uma coisa à toa, esse mito besta de irresistibilidade, mas na prática, quando ele assume uma realidade literal, o efeito é que as pessoas se espantam com você, têm raiva de você, choram por você; e haja fofocas, tentativas de rapto e ameaças de suicídio por causa de você, e gente seriamente obcecada perseguindo você na rua, por mais ridículo que seja. Uns acabam odiando você por conta de um traição que nunca houve, ou porque o vêem como uma pessoa de sorte e resolvem, por raiva, destruir esta sorte. Quando eu era menino, as pessoas falavam muito em mim, brigavam por mim –e ameaçavam usar a força. E houve episódios de violência, e por vezes sobrou para mim também.
Já adulto, conheci casos de crianças que, por serem objetos desse tipo de atenção, acabaram se tornando muito violentas, histéricas, esquisitas. Na minha cabeça, a infância e a adolescência estão associadas à sexualidade, à intrusão da sexualidade dos outros. Contavam-me que Doris Brodkey tentou comprar-me de minha mãe verdadeira quando eu tinha um ano de idade. Imagino que o destino da irresistibilidade no mundo normal seja determinado na infância como condição de existência, na maioria dos casos. Mas no meu caso, em particular, esse destino também contribuiu para a determinação de minha morte.
Lembro que vinha gente à minha casa para me ver –vestiam-me e penteavam-me e levavam-me para a sala, onde eu passava de um colo para o outro. Como eu odiava que me pegassem –até mesmo que me olhassem. Às vezes eu esperneava e gritava e não deixava minha babá me vestir. Chegava a escapulir pela janela do meu quarto, que ficava no andar de cima, e me esconder no telhado para que não me levassem para a sala. Dizia-se com frequência: "Esse menino precisa de disciplina". Hoje pode parecer estranho como causava espanto –e confusão– uma criança dizer "não" nos anos 30, e como era temperamental a reação dos adultos. Muitos anos depois, em Nova York, em quase qualquer área, quando alguém fazia uma proposta sexual, responder "não" era um atestado de amadorismo, de falta de profissionalismo, falta de seriedade –só os bobos diziam "não".
Na verdade, as vítimas da maldição da irresistibilidade terminam sendo interessantes pelo modo como elas fracassam –pela sua vulnerabilidade, pelo modo como batem em retirada, ficam marcadas, engordam ou morrem. Quando me atacam, lembro-me da minha infância. O despeito e a vontade de humilhar se associam de uma maneira instável e mal-humorada, e seu efeito é o de provocar um riso de espanto e reconhecimento secreto. A sanidade se acentua muito, como defesa. Cada contato físico é como uma agressão, ou um recrutamento.
Acaba que quase todos, quando encaram você, sentem-se afrontados em sua irresistibilidade, em sua condição de objetos de emoção, de concorrentes. Assim, os outros ficam achando que você está lhes roubando alguma coisa importante e valiosa; e se você acredita que conhecemos as coisas comparativamente, e se acredita no exibicionismo democrático (competitivo), então é verdade que você está mesmo roubando algo de valioso: a projeção que os outros fazem de sim próprios como pessoas mais merecedoras de amor do que você.
Continua à pág. 6-7

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